Qual o Significado das Eleições nos Estados Unidos?
Por Vinícius Souza Pinto e Olavo Souza1
Publicado originalmente no Jornal O Poder Popular em 6 de novembro de 2024
A disputa entre Kamala Harris e Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos (EUA) provoca diferentes reações, mas devemos lembrar que aqueles que lutam por outra sociedade não podem se enganar com as aparências dos fenômenos, tampouco ignorá-las. Além disso, também não nos é permitido acreditar que aquilo que nos prende às aparências não importa. Vamos por partes.
Superficialmente, pode parecer que a disputa é entre um “fascista autoritário” (Trump) e uma “democrata multiculturalista” (Harris). Ouvimos Trump, e é fácil identificar seu caráter reacionário. Por outro lado, há uma aparência de “moderação” no discurso de Harris.
No entanto, essa aparência é construída cuidadosamente pelo Estado norte-americano, por sua política cultural e mídia, e não resiste ao confronto com os fatos. Por mais que na aparência a disputa pareça ser entre conservadorismo e progressismo, a verdade é que ambos representam a manutenção do sistema capitalista, a continuidade da política imperialista e, para nós, principalmente, a submissão da América Latina. Há quem acredite que Kamala Harris é de esquerda, uma “confusão ideológica” que muitos cometem, inclusive a intelectual abolicionista penal Angela Davis, que apoia Kamala. Mas é ela, a candidata democrata, quem discursa em prol do encarceramento em massa da população negra, quem continuará com as políticas de violência estatal contra imigrantes e quem, assim como seu partido, fortalece os crimes sionistas.
Falar da relação entre América Latina e os Estados Unidos nos obriga a considerar uma marca da nossa relação com o país dentro dos marcos do capital monopolista: a Doutrina Monroe2. O princípio de “América para os americanos” sempre significou, para o gigante do norte, “América para os estadunidenses”, consolidando a primazia dos interesses dos Estados Unidos em todo o continente. Kamala e Trump, como é sabido, representam o imperialismo estadunidense e a aplicação desta doutrina, que vê tudo ao sul como seu “quintal”3.
Mas será só isso que os comunistas têm a observar e a dizer sobre a questão? Se é certo que nenhuma dessas duas candidaturas nos interessa, devemos fechar os olhos aos pormenores e particularidades da conjuntura? Pensemos sobre alguns elementos.
No contexto da explosão da exportação de commodities, dos governos progressistas latino-americanos e da expansão do capital chinês, demonstrou-se uma clara aproximação de Pequim na política econômica no centro e no sul do continente americano. Durante os governos de Evo Morales, com a alta nas exportações de lítio, por exemplo, ou a exportação do gado brasileiro, todas essas dinâmicas econômicas desempenharam um papel fundamental na inserção de um poder que, de certa forma, se opõe ao poder americano no continente. É nesse contexto que devemos retornar à questão das aparências: elas enganam, mas revelam tendências importantes em relação à postura dos EUA no cenário internacional.
A história da relação dos Estados Unidos com a América Latina caracteriza-se pelo uso combinado da força e de acordos com as burguesias locais para impor seu domínio, independentemente de o governo ser democrata ou republicano.
Contudo, à medida que o crescimento chinês começou a ameaçar visivelmente o predomínio do imperialismo ianque, o que se destaca é uma postura cada vez mais abertamente unilateral por parte dos Estados Unidos4, com Trump sendo a maior figura desse posicionamento.
Se os governos democratas já representaram uma espécie de dominação mais “multipolar” (nos marcos da tutela estadunidense do mundo), na prática, esses governos têm sido cada vez mais unilaterais. Destaca-se a continuidade entre os governos Trump e Biden5.
O que mais se sobressai é o recurso à coerção: se o histórico de intervenções estadunidenses na América Latina já era extenso, o que se pode esperar de qualquer governo dos EUA é a intensificação do seu poder militar e do uso da força6. As ações golpistas na última década são provas disso (Brasil, Venezuela, Bolívia, etc.).
No entanto, se a interferência direta dos EUA já foi suficiente para assegurar sua dominação “deste lado do muro”7, hoje a situação é diferente: as estratégias tanto dos democratas quanto dos republicanos têm sido insuficientes para impedir o avanço da China e de seus acordos com países latino-americanos e, assim, retomar o protagonismo norte-americano8. Sinal disso é a aproximação venezuelana aos BRICS e o avanço da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) na América Latina, promovendo infraestrutura e desenvolvimento com investimentos chineses.
Daí que não podemos simplesmente nos recusar a observar os dilemas do governo estadunidense. Se é possível identificar as linhas de força que estarão presentes independente de quem ocupa a cadeira presidencial9, também não é uma questão menor a forma específica como as ações do império se manifestarão. Não são questões menores as diferenças entre Harris e Trump.
Um governo Kamala continuará sentenciando a América Latina como quintal e financiando golpes e guerras imperialistas ao redor do mundo, mas com uma postura mais “politicamente correta” (e mais cínica), apresentando contradições e mediações diferentes das de um governo Trump.
Um governo Trump continuará sentenciando a América Latina como quintal e financiando golpes e guerras imperialistas ao redor do mundo, mas com um discurso mais abertamente belicoso e unilateral, o que traz contradições e mediações diferentes das de um governo Kamala. Vale notar, por exemplo, que a vitória de Trump estimularia bases fascistas e de extrema-direita em todo o mundo, mas que boa parte das lideranças mundiais latino-americanas hoje, com exceção de Milei na Argentina e Bukele em El Salvador, são mais resistentes à conduta do bilionário charlatão.
Independente do vencedor, muitas perguntas se abrem: até quando os Estados Unidos permitirão que a China se entranhe na América Latina sem uma escalada ainda maior da violência? O que, dentro desse conflito, diz respeito à classe trabalhadora latino-americana e como a mudança na cadeira presidencial determina essa relação? Quais “bandeiras” da burguesia americana avançarão e de que forma? Veremos mais armas americanas10 matando nossos jovens negros, mais espiões da embaixada americana atacando nossas estatais e mais subserviência do Exército Brasileiro aos seus interesses?
Além disso, sobre todas as confusões ideológicas que rodeiam os debates acerca da eleição nos Estados Unidos, não basta dizermos que são apenas ideias falsas. Os comunistas devem buscar entender por que os trabalhadores se iludem (lá e aqui) com a apresentação das marionetes que são as eleições burguesas, assim como suas decorrências. Devem entender os motivos e os resultados das ilusões de parte da esquerda brasileira com o “progressismo democrata” (“Axé, Kamala”?).
Ao mesmo tempo, é necessário que as lutas da classe trabalhadora no centro do capitalismo sejam estudadas, para entendermos seu papel e para que nos inspirem11. A desafiadora candidatura independente do Party for Socialism and Liberation (PSL) nestas eleições; o movimento sindical dos trabalhadores dos portos americanos por meio da federação sindical ILA, que, ao ameaçar a deflagração de uma greve em 2024, forçou os patrões a pedir socorro diretamente a Biden; o Raise Up for the South (movimento sindical independente dos trabalhadores do sul dos EUA); o movimento de resistência palestina, que diariamente nos ensina que não devemos deixar os perpetuadores do genocídio no Oriente Médio esquecerem, nem um dia sequer, que eles são assassinos; e até movimentos de massa como Black Lives Matter (BLM) e Occupy Wall Street.
Por fim, se não conseguimos responder à pergunta que dá título à matéria, esperamos ter deixado clara a importância de tal pergunta. Afinal, não é porque nenhuma das duas opções carrega sequer uma migalha de interesse da classe trabalhadora, nem porque ambas significam a continuidade da mão de ferro estadunidense na política internacional, que devemos ver com desdém a política estadunidense. Aqueles que lutam pelo poder popular e pelo socialismo devem conhecer como ninguém as tendências profundas da nossa sociedade se quiserem transformá-la. Não é uma questão menor para o futuro da classe trabalhadora brasileira o papel destinado à América Latina no acirramento da disputa EUA-China, a forma como nosso país se insere nas cadeias globais de produção, os dilemas geopolíticos e outras questões que são suscitadas.
Parafraseando um camarada, “a luta contra o fascismo, quer dizer, contra o capitalismo, exige de nós tanto a identificação precisa e correta de nosso inimigo, quanto que não nos deixemos pautar por falsas, inócuas e problemáticas polarizações. A burguesia sempre será nossa inimiga, não importa se jovem ou velha, se mentindo ou se falando a verdade”.
Notas de Rodapé
- Este artigo de opinião, assinado em 2 de novembro de 2024, foi escrito por Vinícius Souza Pinto, geógrafo e militante do PCB e da UJC em Juiz de Fora (MG), com coautoria de Olavo Souza, estudante de jornalismo e também militante da UJC em Juiz de Fora (MG). ↩︎
- A Doutrina Monroe estabelece o princípio da primazia estadunidense no continente americano, sendo inicialmente formulada pelo presidente James Monroe em 1823 como resposta à intervenção espanhola na América. Seu propósito era afastar a influência de outras potências e restringir a plena soberania dos países americanos. ↩︎
- Onde uma breve distância já revela um profundo contraste: “Enquanto Cuba comprova que o uso intenso de seus modestos recursos na prioridade para elaboração de tecnologias para a vida traz como resultado a primeira vacina contra o câncer de pulmão, os dois guerreiros que medem força na campanha eleitoral dos EUA, gritam para aterrorizar o mundo anunciando continuidade no apoio a Israel e também na continuidade de um unilateralismo neoliberal que investe preferencialmente na indústria bélica, por isso o apoio à guerra da Otan contra a Rússia, e na abertura de nova frente de guerra contra a China” (Beto Almeida, 2024). ↩︎
- Por exemplo, se o governo Obama (2009-2016) tinha como tática a intervenção econômica multilateral – a Parceria Transpacífica (TPP) – para conter a China, especialmente no sul e no leste asiático, o governo Trump (2017-2020) adotou uma postura visivelmente mais beligerante. A Estratégia de Segurança Nacional de Trump (2017) foi clara: “A China e a Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses americanos, tentando corroer a segurança e a prosperidade americanas. Eles estão determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, a aumentar suas forças armadas e a controlar informações e dados para reprimir suas sociedades e expandir sua influência”. ↩︎
- O governo Joe Biden (2021-2024) segue o de Trump no protecionismo e no militarismo, por exemplo. Podemos observar a restrição de semicondutores à China e o acordo de segurança Japão-Coreia do Sul-EUA (JAKUS), uma espécie de OTAN asiática. ↩︎
- A guerra às drogas tem sido um meio relevante para isso. Incluindo o massacre da juventude negra no Brasil, a guerra às drogas é um instrumento disfarçado de sujeição latino-americana. A atuação da DEA (Agência Antidrogas dos EUA) em países como Bolívia, Colômbia, México e Peru marca uma intervenção disfarçada de combate ao “narcotráfico”. ↩︎
- Referência ao muro anti-imigrantes pobres na fronteira EUA-México. O muro, que atualmente conta com milhares de quilômetros construídos, foi um tema relevante nas últimas eleições. O professor mexicano Fernando Buen Abad Dominguez explica: “Esse Muro é um ato de provocação inaceitável e desumano. Contém a ameaça de matar e reprimir milhares de pessoas. É um Muro pensado para acentuar a injustiça de que padecem os imigrantes tratados como ‘ilegais’ e é um horror contra todas essas pessoas que, para sobreviver, procuram qualquer espécie de ‘emprego’. A fronteira com os EUA é não só fonte permanente de abusos, exploração e ignomínia como o projeto para completar este Muro é uma afronta de tal calibre que temos de estar preparados para as consequências. Quem provoca o desemprego, quem gera a miséria toma agora medidas de ‘controle’ para pôr ‘ordem’ na fronteira. Sem deixar de tirar proveito com as remessas, claro!“ ↩︎
- Tanto a reação protecionista, quanto a pressão diplomática, as ingerências golpistas, o discurso de New Deal, a articulação com a direita latino-americana, os embargos, etc., não foram suficientes para reverter a situação: a classe trabalhadora continua a arcar com o ônus da crise, enquanto as classes dominantes dos países latino-americanos seguem e intensificam seus negócios com a China. Na experiência brasileira, o governo Bolsonaro teve seu alinhamento com os EUA e seu esforço anti-China, ambos cabalmente tragados pela exigência do lucro do grande capital local – representado principalmente pelo agronegócio. ↩︎
- Um poeta chileno já entoou:
“Colocam em prática seus planos
com precisão maliciosa,
sem que nada lhes importe.
O sangue, para eles, são medalhas.
A matança é ato de heroísmo”. ↩︎ - E também vindas de Israel, para lembrar do lacaio dos EUA no Oriente Médio. ↩︎
- Positivamente ou negativamente, como lições sobre o que fazer ou até mesmo sobre o que não fazer. ↩︎