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Sobre o foro privilegiado, o populismo penal e as tarefas da esquerda
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Sobre o foro privilegiado, o populismo penal e as tarefas da esquerda

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Por Daniel Buarque, estudante de Direito na PUC-SP e militante da UJC-Brasil

Por muito tempo o ‘’foro privilegiado’’, cujo nome técnico na legislação é ‘’foro especial por prerrogativa de função’’, tem sido alvo de reiteradas críticas de diversos setores da sociedade. Se setores conservadores normalmente se valem do foro para explicar as razões pelas quais determinados políticos envolvidos em acusações de corrupções encontram-se livres de represálias do judiciário, há camadas dos setores ditos progressistas e de esquerda que acusam o foro de ser uma proteção elitista para camadas privilegiadas. O intuito de nosso texto é argumentar que, diante de um rigor analítico que se espera dos militantes marxistas, possamos evitar análises do foro por prerrogativa de função que recaiam sobre falsas polêmicas e efetivamente sejam capazes de chegar à raiz dos problemas que enfrentamos.

Primeiramente, é preciso estabelecer que os argumentos de grupos conservadores sobre a ‘’imparcialidade da justiça’’ que só é barrada pelo foro privilegiado é das mais puras mentiras das quais se possa conceber. O foro não serve como uma ‘’carta mágica’’ para que pessoas evitem a repressão do judiciário, ele simplesmente implica que membros de determinadas camadas do Estado sejam julgados por tribunais específicos. Um defensor assíduo do foro poderia inclusive explicar calmamente o como esta ferramenta é desenhada para que se possa evitar uma atuação privilegiada do judiciário perante alguns em detrimento de outros. Faria algum sentido um governador do Estado de São Paulo ser julgado por um juiz de primeira instância de seu próprio Estado? Tal fato não parece ser muito mais conveniente ao governador do que o juiz? Não seria necessário um jurista experiente com a ‘’prática dos tribunais’’ ou um analista político safo para que se possa supor que tipo de coordenações espúrias podem ser operadas numa situação dessas.

É importante lembrar que os tribunais responsáveis por julgar réus detentores do chamado ‘’foro privilegiado’’ são o STF, o STJ, os demais tribunais superiores e os tribunais de justiça de cada Estado. Que o Supremo Tribunal Federal é responsável por montar a sua própria pauta, e se figuras associadas a partidos como o PSDB e portadoras de foro privilegiado rotineiramente se encontram fora da mira de tribunais superiores ou do STF, isso demonstra uma clara seletividade na atuação destas mesmas entidades. Contudo, caberia refletir sobre quais os avanços concretos que poderiam ser obtidos através da simples retirada deste ‘’foro privilegiado’’, quem seria essa figura política com influência o bastante para se esquivar das pautas de tribunais superiores e ainda assim não ter capital político para influenciar juízes e promotores de primeira instância em seus próprios Estados?

O assunto torna-se especialmente complexo quando olhamos para os campos da esquerda que tão incisivamente reivindicam o fim do foro como uma medida de ‘’combate à privilégios’’. Se o foro originalmente é concebido como uma medida que coíbe juízes e promotores de primeira instância de interferirem nas ações de determinados agentes do Estado (tanto quanto pretensamente visa garantir julgamentos imparciais) em nome de uma estabilidade jurídica que vai de acordo com os interesses burgueses, a retirada do foro poderia representar sérios problemas para representantes dos campos mais críticos e radicais da esquerda que estejam agindo no Estado. Considerando o caráter reacionário de boa parte dos membros do judiciário, não seria difícil imaginar o sem número de juízes da primeira instância e promotores que poderiam se valer do fim do foro para perseguir parlamentares de esquerda por meio de represálias do próprio aparato institucional, tanto quanto a boa velha seletividade que é marca de nosso sistema penal já nos assegura que quaisquer intervenções de ‘’juristas progressistas’’ contra parlamentares reacionários seriam coibidas na maior parte de suas manifestações. Se há alguma dúvida sobre isso basta lembrar de como Beto Richa, ex-Governador do Paraná pelo PSDB, que é investigado por corrupção se proclama a favor do ‘’fim do foro privilegiado’’ já que isso lhe traria garantia de ser julgado no estado do Paraná. [1]

Agora, feitas todas essas críticas aos argumentos favoráveis à retirada do foro, é importante pontuar que a raiva que surge diante dele é inteiramente legítima. O foro existe meramente como instrumento para garantir o ‘’bom funcionamento do Estado’’ e prover o requisito de ‘’segurança jurídica’’ que é tão caro à burguesia na sociedade capitalista, e ele de fato provém de uma origem elitista. Vivemos uma sociedade onde a forma-mercadoria se encontra generalizada em nossas relações sociais, onde as trocas de equivalentes e o mercado regem a vida. Este modelo de sociedade não é possível sem a presença do Estado enquanto um árbitro das relações de troca, agindo de forma coercitiva para garantir as ‘’regras do jogo’’ [2]. O foro privilegiado existe para garantir alguma estabilidade nas ações dos agentes do Estado, protegê-los das iniciativas esporádicas de juízes e garantir que a estabilidade social necessária para a circulação de mercadorias não seja afetada pelos desafetos ou desígnios de um juiz ou promotor em relação aos próprios agentes do Estado que tem como papel prezar por esta ordem. Como já dizia Pachukanis:

‘’A máquina de Estado de fato se realiza como ‘’vontade geral’’ impessoal, como ‘’poder do direito’’ etc., na medida em que a sociedade se constitui como um mercado. No mercado, cada vendedor e cada comprador é, como vimos, um sujeito jurídico par excellence. […] A coerção, como ordem de um homem dirigida a outro e reforçada pela força, contradiz a premissa fundamental da relação entre possuidores de mercadorias. Por isso, na sociedade dos possuidores de mercadorias e no âmbito do ato de troca, a função de coerção não pode atuar como função social sem ser abstrata e impessoal. A submissão ao homem como tal […] significa para a sociedade produtora de mercadorias a submissão ao arbítrio, pois para ela coincide com a submissão de um possuidor de mercadorias a outro. Por isso também a coerção não pode atuar aqui em sua forma desmascarada […] Ela deve atuar como coerção proveniente de alguma pessoa abstrata geral, como coerção realizada não no interesse do indivíduo do qual ela provém – pois cada homem na sociedade mercantil é um homem egoísta -, mas no interesse de todos os participantes do intercâmbio jurídico. O poder do homem sobre o homem é realizado como poder do próprio direito, ou seja, como poder da norma objetiva imparcial.’’ [3]

O Estado, que age com aparente neutralidade na esfera da circulação de mercadorias pois preza pela estabilidade nesta mesma, se faz a ferramenta coercitiva necessária para a manutenção da ordem, sem nunca largar seu aspecto de organização política da dominação de classe. Esta é a verdadeira questão a ser explorada.

A raiva que a população sente de políticos mantidos como ‘’intocáveis’’ é real, o judiciário não lhes representa uma ameaça e quando caem nas garras da justiça é por terem esgotado a utilidade que prestavam ao movimento do Capital. Se a raiva do povo é legítima, cabe aos militantes comunistas direcioná-la a seus verdadeiros inimigos, que neste caso são o próprio judiciário com toda sua seletividade tal qual a burguesia também. A seletividade penal não se mantém através do ‘’foro por prerrogativa de função’’ e sim através de toda a estrutura de controle social que é o sistema de justiça criminal.

Importante ressaltar em qualquer debate que tangencia o direito penal no contexto brasileiro, que estamos falando de um país com cerca de 60 mil homicídios por ano [4] e com a terceira maior população carcerária do mundo (aproximadamente 700 mil presos) [5], e que tanto no número de mortos quanto presos estamos falando de uma maioria de jovens, negros e periféricos, oriundos da classe trabalhadora. É igualmente importante lembrar que de nossa população carcerária, cerca de metade dos presos responde por crimes referentes a patrimônio ou tráfico de drogas (que na opinião pessoal deste autor, é só mais uma forma de luta em torno de patrimônio) enquanto homicídio catalisa aproximadamente 11% do nosso contingente prisional, de acordo com dados do infopen [6]. Seria difícil pensar uma representação mais concreta do que estes dados para expor o sistema penal operando como ferramenta concreta de dominação de classe, protegendo o patrimônio enquanto reprime alguns dos setores mais explorados da classe trabalhadora. A ampla literatura de cunho marxista sobre o tema, com a qual poderíamos citar autoras e autores como Angela Davis e Alessandro Baratta, mas também pensadores brasileiros como Juarez Cirino dos Santos, Nilo Batista e Vera Malaguti, nos colocam a disposição contribuições com as quais podemos afirmar, sem sombra de dúvidas que não há uma ‘’crise’’ no sistema penitenciário, como reproduz a mídia burguesa, e sim um projeto político concreto, pautado no extermínio do povo negro e no controle social da classe trabalhadora.

Se o povo se indigna com os privilégios de políticos, não cabe à esquerda comprar o discurso do populismo penal, e sim encabeçar a construção de lutas políticas que avancem para o cerne das contradições no aparato repressor do Estado. Nos cabe pautar a legalização das drogas, na medida em que a guerra às drogas só serve para legitimar uma política de extermínio, nos cabe pautar a necessidade de medidas concretas de desencarceramento, já que a seletividade presente na estrutura do sistema penal faz dele um sistema de proteção de propriedade e não de justiça, nos cabe a desmilitarização da polícia e a promoção de um debate crítico sobre segurança pública, reconhecendo as condições precárias dos trabalhadores deste meio tanto quanto pautando o anti-punitivismo, nos cabe pautar uma completa reestruturação do sistema judiciário, promovendo o controle popular do sistema de justiça, eleição direta e removibilidade de seus funcionários. A retirada do foro privilegiado em pouco ajudaria na alteração do presente prognóstico sobre o sistema penal, tal qual a prisão de três ou cinco parlamentares de direita já isolados ou de ex-Governadores sem popularidade representaria muito pouco para as lutas da classe trabalhadora. A expropriação de suas fortunas talvez fosse um avanço, mas isso o Direito Penal não tem o costume de abarcar.

Enfim, há um sem número de tarefas a serem tocadas pela esquerda, poderíamos ter falado sobre a importância de promover respostas a conflitos que priorizem a solução destes mesmos através de deliberações coletivas, ou até mesmo nos embrenhado mais no debate sobre encarceramento em massa. O debate é complexo e de forma alguma as respostas que a esquerda deve dar para combater a perseguição política promovida pelo judiciário serão esgotadas em um breve artigo. Mas o foco de nossa elaboração é que os militantes comunistas e socialistas devem sempre pautar suas ações cientes dos limites e contradições presentes na estrutura social capitalista, e de forma algo temos o luxo de prestar o desserviço que é a promoção de discursos legitimando o populismo penal.

Referências

[1] FELITTE, Almir. Fim do Foro Privilegiado é a proposta de quem não tem proposta. Disponível em: http://www.justificando.com/2018/05/04/fim-do-foro-privilegiado-e-a-proposta-de-quem-nao-tem-proposta/

[2] PACHUKANIS, Evgeny. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e ensaios escolhidos (1921 – 1929). Coordenação Marcus Orione, Tradução Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017. p 174-175

[3] Ibid.

[4] Atlas da Violência 2018: Brasil tem taxa de homicídio 30 vezes maior do que Europa. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/atlas-da-violencia-2018-brasil-tem-taxa-de-homicidio-30-vezes-maiordo-que-europa-22747176

[5] http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen

[6] Ibid.