Por: Messias Martins*
“O futuro chegou e ainda usamos correntes,
escravizados através do tráfico de entorpecentes.
Nos empurram todo dia goela abaixo
ódio, medo, desespero e incentivo à violência.
Dizem que somos bandidos,
mas quem mata usa farda e exala despreparo e truculência”.
Funkeiro, em Favela Vive 2
O sonho de consumo chegou em Olinda na forma de um shopping inaugurado no dia 25 de abril. Centenas de pessoas compareceram a abertura do Patteo Olinda Shopping, antiga fantasia de diversos prefeitos da cidade e agora usado nos palanques pelo atual prefeito Professor Lupercío, do Partido Solidariedade, como grande marca de sua gestão. Uma pena para a cidade as aulas de Lupercío não terem respeito ao Cine Olinda, de mais de 60 anos de existência, que permanece fechado há anos.
Tupac já dizia: algumas coisas nunca mudam. Na ocasião da abertura do Shopping Pattio Olinda a polícia foi acionada pelos seguranças devido a enorme quantidade de jovens “suspeitos”. Houveram revistas e esses jovens, em sua maioria negros e pobres, foram “convidados” a se retirar. Apesar da divulgação de que esses jovens estavam fazendo um arrastão nenhuma das lojas se queixaram de roubo. Em nota ao Diario de Pernabuco a acessoria de imprensa do shopping escreveu: “Na tarde desta quarta-feira (25), a segurança do Patteo Olinda Shopping foi acionada para controlar um grupo de jovens que circulava pelo hall. A situação foi controlada pela equipe de segurança sem qualquer dano aos clientes e lojistas. O shopping segue funcionando normalmente, sem qualquer transtorno.” Porém se não cometeram crime por quê então foram barrados? Seu “crime”, o que levou os seguranças acionarem a PM, foi colocar seus pés para dentro de um estabelecimento construído para deixá-los do lado de fora.
Por quê os administradores do shopping, polícia, parte da mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping como “arrastão”? Honestamente, a reação seria a mesma se o grupo de jovens fossem estudantes do Colégio de São Bento ou do Santa Emília? Por quê há desconforto em ver negros e pobres ocupando um espaço em que não se esperava que estivessem, ainda mais como consumidores de certos produtos que deveriam ser mais exclusivos? Se fosse em um shopping mais nobre, o RioMar ou Plaza, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se vista, a repercussão, sabemos, não seria a mesma.
A lógica de consumo na sociedade capitalista também chega na períferia. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”. É difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito na ocupação desse espaço por jovens perifericos, mas é nitído a procura por espaços de lazer na cidade. Se houve de fato correria quem a provocou foram os jovens ou ação dos seguranças e policia? E quantos desses jovens não eram filhos e filhas desses trabalhadores? Divertir-se na cidade parece ser um ato de rebeldia.
Toda essa história me fez lembrar do documentário “Era uma vez um arrastão”. Nele, conta-se sobre o dia em que jovens negros resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada per diversos meios de comunicação como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita, que muitas vezes parece não poder ver um corpo negro que já quer bater.
Em um livro sobre educação e juventude o sociólogo polonês Zygmunt Bauman ressalta a necessidade cada vez mais urgente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais. Em nosso caso, não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros são os da casa, ou melhor, da senzala, no esteriotípo de jovens negros e pobres.
Em 1888 houve o fim da escravidão legal no Brasil, mas suas marcas de mais de 300 anos são ainda bem visiveis. “Como assim bala perdida o corpo caiu no chão?” questiona Criolo em uma de suas canções. Mais de 71% desses corpos tem uma cor e cep especifico. Diversos movimentos, além de enterrar os corpos, vem diariamente denunciando o assombroso aumento do número de homicídios da nossa juventude, isso sem contar aqueles que desaparecem misteriosamente.
O Atlas da Violência publicado em 2017 pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra jovens negros e pobres como as principais vítimas de violência no país e que mais de 318 mil jovens foram assassinados no Brasil entre 2005 e 2015. O índice de mortalidade de mulheres negras entre 2005 e 2015, subiu em 22%, ainda de acordo com essas informações, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação aos não negros no Brasil. No mesmo período a taxa de homicídios de negros subiu 18,2% enquanto o de não negros diminuiu 12,2%.
O dia 21 de março é o Dia Internacional de Luta Contra a Discriminação Racial. Esta data de luta, instituída em memória das vítimas da violência policial, praticada pelo governo da África do Sul, no período histórico em que o Apartheid estava em vigência, traz consigo a história de luta da população de Shaperville. Mais de 20 mil pessoas foram as ruas nessa data em 1960 para protestar contra a Lei do Passe, norma que obrigava os negros a portarem um cartão que indicava os locais onde era permitida sua circulação e que caracterizava uma das várias exigências estabelecidas por este regime de segregação racial, que existiu de forma legalizada e com a conivência dos países capitalistas entre 1948 a 1994. Apesar de pacífico o protesto sofreu com a repressão policial, onde abriram fogo sobre a multidão desarmada, deixando 69 mortos e 186 feridos.
No contexto em que vivemos no Brasil, de agravamento das tensões políticas, de uma ofensiva de retiradas de direitos e aumento da violência, no dia 14 de março Marielle Franco e Anderson Gomes foram brutal e covardemente assassinados, no Rio de Janeiro. Marielle era graduada e mestre em Serviço Social e também a quinta vereadora mais votada de uma das cidades mais importantes do país. Duas caracteristicas são marcates em seu assassinato: Marielle era negra, mulher e bissexual, carregando em suas costas o racismo, machisto e lgbtfobia, e o segundo é que Marielle era socialista e dedicava sua vida a lutar por uma sociedade livre da dominação do homem pelo homem. Seus assassinos não só a arrancaram do meio dos seus e suas como também negou a sua família o direito de um enterro com caixão aberto.
Em tempos de golpe onde muitos passaram a falar em estado de exceção, nós comunistas denunciamos que a favela nunca conheceu um estado diferente. Estado de exceção tem sido todo estado que a parte mais pobre da classe trabalhadora conhece. Rafael Braga ainda está preso, um exemplo vivo da arbitrariedade policial. A única pessoa presa e condenada por conta das manifestações de 2013. Flagrante forjado e a sentença de 11 anos de reclusão por tráfico e associação ao tráfico de drogas, atualmente em regime fechado. Não por acaso Rafael é negro e morador de rua.
Rafael tem a cor e o cep de corpos que ocupam as penitênciárias, paredes essas sim, construídas para deixá-los do lado de dentro. Segundo dados divulgados em 2014 pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (Infopen), o Brasil chegou à marca de 607,7 mil presos. Desta população, 41% aguarda por julgamento atrás das grades. Ou seja, em 2014 havia mais de 222 mil pessoas presas sem condenação. O Brasil atualmente é o quarto país com maior população carcerária do mundo, porém é o que apresenta um aumento assustador: em 2018 a população carcerária já últrapassa os 720 mil pessoas “vivendo”, tal como seus antepassados que tiveram sua vida tragada pela escravidão, um inferno na terra. Prisões super lotadas são realidade em todos os estados brasileiros e Pernambuco com suas 11.308 vagas, últrapassa o limite em mais de 237% da taxa de ocupação. Para o presidente da OAB, Claudio Lamachia, o Estado brasileiro perdeu o controle das prisões, que se encontram na mão do crime organizado.
Em uma das faixas do álbum A Fantástica Fábrica de Cadáver, o rap Eduardo Tadeu nos lembra que “na era moderna, iluminista, pediam igualdade, na era das chacinas pedem restos mortais as autoridades”. É escancarado diante de nossos olhos uma política de segurança pública racista que vê os jovens negros e pobres como potenciais criminosos e inimigos do Estado, sempre vistos como suspeitos e pessoas perigosas. O crime, mesmo quando não provado, acaba servindo de justificativa para o assassinato e encarceramento, o que demonstra haver a naturalização do racismo, da desigualdade e da violência. A política de guerra as drogas é apenas mais um eufemismo para o extermínio da juventude negra e pobre do nosso país. A única alternativa diante da opressão e segregação que vive a população negra brasileira é o enfrentamento direto ao racismo, que passa pela identificação e denúncia do sistema de relações sociais no qual se reproduz. Também nas palavras de Djonga: fogo nos racistas.
*militante da UJC-Brasil em Pernambuco.