Por Henrique Oliveira, mestrando em História Social na UFBA, colaborador da Revista Rever/Salvador e militante da UJC-Brasil na Bahia.
No sábado pela manhã, horário do Brasil, ocorreu o jogo das oitavas de finais da Copa do Mundo entre Argentina e França, uma partida com muitos gols, que teve a França abrindo o placar, depois tomando uma virada de 2×1 do time argentino, para depois conseguir ficar novamente à frente, com um 4×3, que classificou a seleção francesa para as quartas de finais, onde vai enfrentar o Uruguai. O destaque do jogo foi o jovem jogador francês Kylian Mbappé, responsável por arrancadas velozes que atordoaram a defesa da seleção argentina.
Só que Mbappé não se tornou apenas destaque aqui no Brasil pelas suas jogadas. Num pós-jogo que deveria render muita discussão sobre a qualidade do atleta, na rede social brasileira que deveria ser dominada pelos chamados memes e provocações por causa da rivalidade continental entre Brasil e Argentina, o que chamou a atenção foi um comentário racista do youtuber Júlio Cocielo. Em seu perfil pessoal, o youtuber disse que “mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein.”
E logo foi perceptível que a “piada” de Júlio Cocielo se tratava do clássico e dissimulado racismo brasileiro, associando um homem negro e sua velocidade com a prática de assaltos coletivos, realizados por pessoas a pé, que roubam e saem correndo, principalmente em imagens registradas no Rio de Janeiro. Não precisou em nenhum momento que Cociele dissesse que Mbappé era um homem negro, bastou apenas uma leitura de como age o racismo brasileiro, que construiu sobre pessoas negras os estereótipos negativos, entre eles o da criminalidade.
Os estereótipos raciais na sociedade brasileira atuam como mecanismos de dominação e controle, baseados em falsas generalizações sobre os grupos humanos, com a finalidade de garantir as práticas discriminatórias. Segundo os professores Adilson Moreira e Silvio de Almeida, num artigo para o Justificando, os estereótipos agem como esquemas mentais que determinam a nossa percepção sobre o outro, com uma dupla característica: a descritiva, que expressa supostos perfis de determinados grupos sociais, e a prescritiva, que indica quais os lugares eles podem ou devem ocupar na sociedade.
As noções negativas sobre os membros de grupos étnicos nunca são resultados de uma criação individual ou externa à sociedade em que se vive, elas são criadas a partir dos processos estruturais ligados à inferioridade política, econômica e cultural que tais grupos estão submetidos por outros. O que Júlio Cocielo reproduziu em sua “piada” não foi nada menos do que o racismo brasileiro, que durante esses séculos vinculou as pessoas negras, por causa da sua origem africana, aos atributos da violência e aos atos antisociais, em que os negros seriam mais propensos à criminalidade, ancorados, inclusive, nas teorias ditas científicas do século XIX, como a Antropologia Criminal do italiano Césare Lombroso, que por aqui ganhou uma tradução e adaptação do médico legista baiano Nina Rodrigues. Nessa abordagem, as pessoas negras cometeriam crimes pelo seu suposto atraso biológico na escala da evolução humana. Portanto, eram sujeitos primitivos e selvagens, incapazes de viver em sociedade de forma pacífica.
E quem nunca ouviu aquele comentário racista que diz assim: “branco correndo é atleta e preto correndo é ladrão”? A noção de periculosidade sobre as pessoas negras é um instrumento de controle penal, que baseia as ações das instituições policiais e judiciária brasileiras. Em 2015, no Rio de Janeiro, um jovem negro gravou a sua própria morte no celular, ao perceber uma ação policial enquanto brincava com os amigos. Os policiais militares alegaram que o jovem tinha morrido numa troca de tiro, mas as imagens registradas desmentem a versão policial, permitindo ouvir a voz de um dos PMs perguntando aos garotos por que eles correram. Recentemente, o ator baiano Leno Sacramento, do Bando de Teatro do Olodum, foi baleado na perna por policiais civis após ser “confundido” com suspeitos de um assalto, na região central de Salvador. O valor expresso sobre um homem negro no comentário de Júlio Cocielo em seu Twitter carrega o mesmo valor que um policial utiliza para decidir quem vai continuar vivendo e quem irá morrer nos tribunais de rua.
Logo após a denúncia de racismo se multiplicar na internet, Júlio Cocielo apagou nada além de 50 mil mensagens no Twitter, só para termos uma ideia do nível de mensagens ofensivas que ele compartilhou ao longo desse tempo. O youtuber se defendeu dizendo que o tweet foi interpretado de diversas formas, repetindo aquela mesma lógica de quem é “flagrado” sendo racista: o racismo é sempre um problema de interpretação dos outros e não uma ação intencional de quem emite determinados comentários. Se Cocielo quisesse realmente fazer algum tipo de piada com a velocidade de Mbappé, poderia ter feito o comparando com Usain Bolt, recordista mundial de corrida e que também é um homem negro, ou de diversas formas, sem associá-lo com a criminalidade.
A onda de denúncias dos comentários racistas de Júlio Cocielo chegou aos seus patrocinadores, pois o mesmo já foi garoto propaganda da Coca-Cola, Submarino, Itaú, McDonald’s, Adidas, Gillete, resultando na perda de contratos. Em uma nota publicada no domingo, o site do Submarino disse que “repudia veementemente qualquer manifestação racista e que tomará as providências necessárias”. A Coca-Cola, que tinha contratado Cocielo para as Olimpíadas de 2016, afirmou que “não tem mais vínculo com o youtuber e nem tem planos para o futuro”. O banco Itaú substituiu um vídeo para a Copa do Mundo em que Cocielo aparecia, externando que “repudia toda e qualquer forma de discriminação e preconceito”. “Esperamos que o respeito à diversidade sempre prevaleça.”
A postura das empresas que patrocinavam Júlio Cocielo é de quem foi pego de surpresa com um erro de uma pessoa qualquer, mas a questão é que Cocielo é digital influencer com 16 milhões de pessoas inscritas no seu canal no Youtube e com 7 milhões de seguidores no Twitter, a maioria formada por crianças e adolescentes, o que é mais perigoso ainda. Que tipo de geração vem sendo (de)formada por esses youtubers? Da mesma forma que as pessoas conseguiram resgatar várias mensagens com conteúdos racista, machista e homofóbico de Cocielo, as empresas poderiam fazer o mesmo, se elas realmente estivessem interessadas em respeitar a diversidade e se posicionassem contra as variadas formas de discriminação. O que as empresas estavam almejando era o alcance de publicidade que Júlio Cocielo tem no mundo virtual é o retorno financeiro que ele poderia trazer. Porque no capitalismo o objetivo final de toda empresa é lucrar, não importa como.
Há alguns anos já vem sendo promovido um debate público acerca dos comediantes e suas “piadas” que visam gerar o riso através da humilhação de mulheres, negros e LGBTs. E o que foi feito por parte desses artistas? Optaram por resistir, estigmatizando quem os criticavam de “politicamente correto”, e até mesmo disseram que estavam sendo “vítimas de censura”, em nome de um humor antiquado, ofensivo e que reproduz as desigualdades existentes, tentando esconder atrás de uma falsa neutralidade em nome da liberdade expressão e profissão.
Mbappé é um jovem negro de 19 anos de idade, segundo o jornal francês L’Équipe, o jogador está doando os 90 mil reais que ganha por jogo na Copa do Mundo para instituições de caridade. Enquanto aqui no Brasil, jovens negros da idade Mbappé estão sendo exterminados, figurando entre as principais vítimas de homicídio, assassinatos em massa que não sensibilizam a sociedade, porque justamente os jovens negros são tratados como bandidos e causadores de arrastões.