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Os problemas do Novo Marco Regulatório do EaD
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Os problemas do Novo Marco Regulatório do EaD

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Em maio deste ano, a publicação do Decreto Nº 12.456 pelo Governo Lula foi comemorada como vitória pelo campo democrático-popular, exaltada pela Diretoria da UNE como uma “vitória dos estudantes”. É preciso reconhecer alguns avanços, comparando com a libertinagem concedida pela legislação anterior, como a limitação de estudantes por turma e uma pequena redução na carga horária EaD nos cursos presenciais. Mas esses pequenos avanços não podem ser confundidos com uma vitória; são medidas paliativas frente a um programa estruturalmente neoliberal e uma legislação extremamente alinhada aos interesses dos oligopólios da educação, chamados carinhosamente de tubarões do ensino.

Para começar, é evidente a grande flexibilização do caráter presencial dos cursos, que ainda podem ter 30% de sua carga horária em formato EaD, enquanto o semipresencial precisa contar com apenas 30% da carga horária presencial e o EaD precisa ter somente 20% de atividades presenciais ou síncronas mediadas. Ou seja, os cursos presenciais passam a ser majoritariamente presenciais, os semipresenciais pouco presenciais e os EaD precisam ter a mediação de um profissional em apenas 20% das atividades do curso.

Essa flexibilização do caráter presencial anda de mãos dadas com a precarização do ensino, o esvaziamento do espaço universitário e a acomodação com a falta de políticas de permanência estudantil. A lógica é cruel: em vez de garantir condições de estudo, alimentação e moradia (perto das universidades) para os estudantes, é mais interessante (para a burguesia) prejudicar a formação, visto que a maioria dos jovens não possui condições adequadas para estudar em suas residências, e muitos dependem das políticas de permanência estudantil, como Restaurantes e Residências Universitárias, para seu sustento diário.

No caso dos cursos EaD, a situação é ainda mais problemática. Como pode um curso de educação superior contar com apenas 20% de atividades síncronas com a presença de um mediador? Em pelo menos 80% do tempo espera-se que o estudante trabalhe com aulas gravadas e atividades, basicamente tornando-se um estudo individual com a possibilidade de solicitar ajuda “dos universitários”. Com esse modelo, destrói-se completamente o processo dialógico entre professor e estudante, onde atuam juntos na construção do conhecimento, ficando então limitado às concepções em que o estudante é um ‘depósito’ de saberes ou onde o professor é apenas um “mediador” do conhecimento, que cabe ao estudante descobrir.

Também é estabelecida uma certa “hierarquização” entre diferentes cursos: aqueles que devem ser oferecidos exclusivamente de forma presencial, os que podem ser semipresenciais e os que não têm qualquer limitação. No primeiro grupo estão os cursos de Direito, Medicina, Enfermagem, Odontologia e Psicologia, com oferta exclusivamente presencial —- com a particularidade de Medicina ter sua carga horária 100% presencial. Já os demais cursos da área da Saúde e licenciaturas não podem ser EaD, limitando-se ao formato semipresencial. Por fim, para Artes, Humanidades, Administração, Comunicação, Computação e Ciências de Computação e Informação não há qualquer limitação.

Curiosamente, Medicina, que sempre manteve certa reserva de mercado no país, é o único curso que preserva seu caráter 100% presencial, enquanto diversas outras formações onde esse caráter e a formação humana e dialógica são essenciais —- como Enfermagem, Pedagogia, Licenciaturas em geral, Psicologia, entre outros —- não recebem a mesma atenção. Não se trata de criticar uma medida acertada, mas de questionar sua razão de ser: não seria esta, na verdade, uma forma de impedir a concorrência em um curso tão rentável para esses tubarões?

Da precarização do trabalho dos professores

Para regulamentar este decreto, viria a Portaria MEC Nº 506, de 10 de julho de 2025, assinada por Camilo Santana – esta introduz uma questão interessante para debater a categoria docente e a formação de professores. Em sua Seção II, que dispõe sobre as atribuições do corpo docente, a Portaria regulamenta três diferentes funções para este: 1) o coordenador do curso; 2) o professor regente; e 3) o professor conteudista – elaborando uma breve “racionalização” do trabalho em prol dos capitalistas.

De forma breve, ao coordenador do curso cabe o regimento e a articulação do curso em geral; ao regente, a coordenação de uma unidade curricular e a mediação direta com os estudantes; e ao conteudista, elaborar o material didático e “validar” o método e o conteúdo dados pelo regente. Se organiza então uma verdadeira fábrica do saber – com gerente de produção, operário e supervisor.

É evidente o quanto essa organização se distancia de uma construção democrática do processo educativo. São excluídas a participação do estudante e do corpo técnico administrativo – a própria integralidade do trabalho do professor é destruída, já que há uma clara divisão entre quem “elabora” e quem “executa” os planos pedagógicos e os materiais didáticos. O processo educativo fica distorcido, unilateral e perde muito em qualidade – com um processo de controle do trabalho cada vez maior sobre os professores, que ficam restritos a reproduzir o conteúdo vindo “de cima” – a educação superior abandona então seu lugar na ciência e vira reprodutora da ideologia da classe dominante.

Também é sintomático que a limitação de estudantes por turma tenha ficado em “apenas” 70 alunos – uma quantidade absurda para qualquer professor, tornando impossível o acompanhamento qualitativo da formação dos estudantes e fazendo necessária uma lógica de resultados avaliativos que não garante a apreensão do conteúdo. É lugar comum que a diminuição da razão aluno/professor faz parte de uma política educacional que vise a formação com qualidade – e essa claramente não é a prioridade dos tubarões.

Uma educação apropriada para o neoliberalismo

A própria noção de educação baseada em competências e habilidades (com esvaziamento silencioso do conteúdo) é uma forma ideológica que pretende formar trabalhadores disciplinados para a atual situação do mercado de trabalho sob o neoliberalismo. O desemprego elevado e a alta rotatividade criam uma lógica em que o trabalhador deve “se manter” em qualificação constante, transferindo para o indivíduo a tarefa de se adequar a um mercado de trabalho cruel e desigual, enquanto exime as empresas e o Estado da responsabilidade de garantir emprego e qualificação da força de trabalho.

Cada vez mais, então, o conteúdo e o conhecimento científico são secundarizados no processo educativo, enquanto as competências “socioemocionais” são priorizadas para aumentar a “taxa de empregabilidade” dos formandos, como admite Bruno Soares, Diretor da UNIFACS, em artigo recente publicado no Correio da Bahia. Em outras palavras, a educação superior deve dar mais ênfase em preparar profissionais para o mercado de trabalho, desenvolvendo neles as competências corretas para que encontrem emprego – isto é, qualidades como disciplina, “criatividade” e “fluidez”, e não características tão problemáticas como senso crítico, formação científica e organização coletiva. O ensino focado em competências é, na verdade, um ensino baseado em disciplinar a força de trabalho.

De forma correlata, dissemina-se cada vez mais uma concepção de educação que vê como necessária a “prática” no local de trabalho “real” como parte integrante do processo educativo. Embora possa parecer correta para os que defendem a escola integral e compreendem o trabalho como princípio educativo, é importante lembrar que essa inserção do trabalho como prática educativa ocorre dentro das relações de produção capitalista em seu atual estado de precarização no neoliberalismo. Portanto, o trabalho aqui não é entendido como parte integral de uma formação politécnica e omnilateral, mas sim como experiência do mercado de trabalho – uma inserção precoce que visa tanto “preparar” o estudante para o contexto de exploração quanto obter certa quantidade de trabalho não remunerado, em vez de contratar profissionais formados. A questão não é negar a prática das clínicas-escolas, dos núcleos de prática ou dos programas de iniciação em determinada categoria, mas sim situá-las nos termos adequados: não podem ser reprodutoras da sociabilidade neoliberal.

O Novo Marco Regulatório do EaD faz parte de um sistema educacional construído para formar força de trabalho barata e disciplinada para o capital. Essa educação não pode emancipar ninguém; na verdade, sacrifica a formação da juventude para manter a classe dominante no poder. Para contrapor essa formação ideológica, é necessário construir um projeto de Educação Popular – democrático, científico e com horizonte socialista.

Por Guilherme Corona, militante da UJC na Bahia