A Munição da Direita Não é Travesti
Por Victor Ribeiro e Mava, militantes da UJC e do PCB
Publicado originalmente no Jornal O Poder Popular em 28 de Outubro de 2024
No dia 18 de outubro, grande parte da mídia burguesa noticiou, de forma sensacionalista e reducionista, parte do seminário “Dissidências de Gênero e Sexualidades”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Epistemologia da Antropologia, Etnologia e Política (Gaep) na UFMA. Entre as apresentações, estava a palestra ministrada por Tertuliana Lustosa (mestranda em Pós-Cultura, historiadora da arte, escritora, cantora e compositora), que abordou seu artigo “Educando com o Cu: Traveco-terrorismo e Descolonialidade de Gênero na Arte” e, em alusão, realizou uma pequena performance artística, rebolando a bunda de modo erótico para um público totalmente adulto – o que provocou polêmica nas redes sociais.
Essa polêmica, vale destacar, não foi orgânica. Grande parte das notícias divulgadas, principalmente em perfis do Instagram, TikTok e X/Twitter, sobre o assunto, convenientemente pouco ou nada contextualizou o evento, censurou as imagens, tornando turva a informação de que Tertuliana estava completamente vestida durante a dança, e reduziu a questão à sua identidade travestigênere. As intenções aqui são claras: induzir o leitor médio a uma interpretação reacionária dos fatos ocorridos na UFMA, conquistando engajamento ao inflamar o ódio contra a população LGBTQIAPN+ (sobretudo a parcela trans e travesti), contra os movimentos sociais de esquerda que se antagonizam às opressões de sexo e gênero e contra as universidades públicas.
Aqueles que observam com atenção já não se chocam com esse tipo de abordagem – ou não deveriam se chocar. Nos últimos anos, a extrema-direita e diversos veículos de mídia têm sistematicamente utilizado essa metódica para atacar, censurar e/ou invisibilizar o conteúdo crítico de produções anti-CIStêmicas1, criando um verdadeiro circo midiático alicerçado na discriminação de corpos dissidentes para alcançar engajamento e influência. O ano de 2017, em específico, trouxe vários exemplos disso: a cruzada exitosa liderada pelo MBL contra a exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, no Santander Cultural, em Porto Alegre, que foi encerrada prematuramente por abordar a infância da população LGBTQIAPN+; os ataques organizados contra a exposição do “História da Sexualidade”, que ocorreu no MASP, em 2017; e os protestos à performance “La Bête”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Ainda que esse modus operandi seja bem conhecido, vemos a população, inclusive autoproclamados ativistas e militantes progressistas, engajando-se em mais uma onda de ódio gerada artificialmente.
O que Aconteceu, o que Acontece e o que Deveria Acontecer
Os trabalhos de Tertuliana questionam as normas de gênero e desafiam o moralismo conservador vigente em nosso senso comum, que há tempos busca ditar o que pode ou não ser debatido dentro e fora dos espaços acadêmicos. Com a onda bolsonarista e os ataques às universidades e à educação desde 2017, essa maré cresce absurdamente e se conforta em expressar suas opiniões reacionárias.
O artigo em questão, publicado na revista Periódicus, provoca um debate cada vez mais necessário sobre diversidade, abordando as implicações do prazer e do corpo como potências pedagógicas e artísticas – um tema estigmatizado na sociedade –, sendo fundamental para refletirmos sobre a importância de desmantelar as normas opressoras que ainda nos governam. Vale destacar uma citação de Javier Sáez e Sejo Carrascosa:
“O cu é o grande lugar de injúria, do insulto. Como vemos em todas essas expressões cotidianas, a penetração anal como sujeito passivo está no centro da linguagem, do discurso social, como o abjeto, o horrível, o mal, o pior. Uma das primeiras coisas que aprende um menino ou uma menina é que ‘tomar no cu’ é algo terrível. Ainda que o pequeno sujeito não saiba o que é exatamente esse “tomar”, o tom insultante cria uma aprendizagem, uma prevenção. O interessante do insulto é que cria uma realidade sem referência, somente um valor flutuante, sem conteúdo. Bicha! Sapatão! Vai tomar no cu! Quando um menino ou uma menina escuta isso, nas primeiras vezes não significa nada de concreto – é o valor do negativo que se transmite e percebe-se, não um saber sobre o que é ser gay, lésbica, ou o que é, concretamente, a penetração anal. Não se trata de um doutrinamento preciso e deliberado contra os/as menores.”2
A academia historicamente sempre foi um espaço de resistência, produção de novas ideias e transformação. É (ou deve ser) justamente o espaço ideal para questionar estruturas opressoras e discutir temas como a descolonialidade de gênero e corpos, que podem – e devem – ser palco de performances artísticas desconfortáveis aos olhos de parte da população. A apresentação de Tertuliana vai justamente neste sentido, assegura a manutenção desses papéis. Mas por que, ainda assim, incomoda aqueles que sequer estiveram presentes na palestra?
Esse moralismo nada mais é que puro preconceito, um método de controle do comportamento, o que conhecemos como o apelo à “moral e aos bons costumes”. A transfobia ganha legitimidade nessa base moralista e se intensifica à medida que as pessoas se sentem mais encorajadas a expressar seus preconceitos abertamente, impulsionadas pela mídia, que divulga a notícia de forma reducionista e oportunista.
Parte dos ataques se ancoram no discurso de que “a academia não é o lugar para isso”. Contudo, esse argumento, reproduzido até por setores da própria esquerda, ignora a própria história das universidades como espaços de contestação, resistência e inovação, que perdura mesmo com os ataques diretos a ela. Aceitar que temas como esse não devem ser discutidos perpetua a visão conservadora de que o conhecimento deve se limitar a certas áreas “aceitáveis” e “neutras”, quando, na verdade, todo conhecimento é político.
É importante destacar que corpos não cisheteronormativos sempre foram marginalizados e, ainda hoje, lutam por direitos que deveriam ser básicos, como o acesso ao ensino superior – que ainda não é um direito universal (como deveria ser), sendo historicamente negado à população T. A UJC e o PCB estão na linha de frente dessa luta que já conquistou o avanço da política de cotas para pessoas trans na UFF, UFSC, UNB e UFBA.
Com o avanço das políticas de inclusão, é natural que temas envolvendo essas pessoas ganhem mais presença nas universidades, o que choca aqueles acostumados a uma visão desse espaço baseada em um padrão social completamente monolítico. Nos anos 2010, guardadas as devidas proporções, observamos “polêmicas” de similar conteúdo e origem com a propulsão de políticas públicas destinadas à inclusão da população racializada e de baixa renda. Não esqueçamos da indignação com o aumento da presença de jovens periféricos em shoppings – que chegou nas vias da criminalização – e das inúmeras manifestações contra a presença das classes mais baixas nos aeroportos. Quando um estrato social perde o seu monopólio sobre um espaço, sempre há quem se incomode.
Enganam-se, no entanto, aqueles que pensavam que o ambiente acadêmico seria eternamente restrito às suas visões higienistas de mundo. Iludem-se mais ainda os que acreditam defender essas políticas de inclusão, mas, na prática, cerceiam todo e qualquer produto que se refere à realidade de corpos dissidentes. A verdade, a realidade material, chegou à universidade pública para permanecer e se expandir, tem corpo de travesti, é implacável, despreza estas visões míopes de mundo, e marchará sobre seus dogmas trazendo a ciência, a filosofia e a arte.
Sobre a Munição da Direita
Há também a ladainha de que performances como essa “dão munição para a extrema-direita”. Desde quando a extrema-direita precisa de munição para nos atacar? Eles já têm como alvo qualquer coisa que ameace seu CIStema burguês e patriarcal, qualquer coisa que ameace sua posição de poder sobre os outros.
O simples fato de a população se organizar, seja por meio da arte, do debate acadêmico ou da mobilização social, é suficiente para essa corja reacionária nos atacar. A máquina do ódio do fascismo funciona com ou sem a esquerda. É assim e sempre foi: se não tem ninguém rebolando a bunda, inventam um kit gay, uma “ideologia de gênero” ou um projeto de doutrinação das esquerdas nas escolas. Paralelamente, os comunistas já estão familiarizados com este padrão; ainda que se comportem, haverá quem noticie uma ameaça vermelha, um plano de golpe em curso ou um marxismo cultural.
Esse argumento de “munição” é usado principalmente por setores conciliadores da esquerda, que não fazem parte do espectro radical da esquerda e não enfrentam os ataques diretamente ao povo, mas sim se omitem, buscando performar um suposto e ilusório terreno neutro que nunca existiu.
A verdade é que é justamente essa esquerda conciliadora, social-democrata, representada na política institucional por PT, PSOL (em parte) e PCdoB – há quem inclua também PDT e PSD – que ameaça as universidades públicas, põe em xeque a credibilidade da esquerda e dos movimentos sociais e fortalece a extrema-direita.
Neste sentido, dentre os vários exemplos que podem ser citados, nos últimos anos temos observado governadores e prefeitos supostamente progressistas armando as guardas municipais, fortalecendo a militarização das escolas, impulsionando agendas pentecostais nos espaços de ensino e criminalizando as greves docentes e discentes, garantindo, portanto, força às pautas da direita, além de fornecer mais instrumentos para o avanço dos discursos direitistas.
Além disso, no âmbito federal, presenciamos o Governo Lula III semanalmente confrontando direitos da classe trabalhadora para agradar à burguesia ou aos militares. Podemos citar, como exemplo, o veto da presidência ao direito à memória de resistência à ditadura militar; o menosprezo às greves dos servidores públicos, traindo quem o elegeu; e a imposição de políticas de austeridade, que sucateiam principalmente a parte da máquina pública destinada à manutenção de direitos (incluindo as universidades públicas).
No contexto universitário, principalmente dentro do movimento estudantil, essa descrença anti-esquerda torna-se ainda mais vexatória, visto que as entidades estudantis hegemonizadas por este setor foram completamente sucateadas. Dentre os inúmeros exemplos, destaca-se a UNE, que se tornou completamente alienada às demandas dos alunos e deixou de apresentar uma real combatividade, servindo apenas de forma pelega aos governos petistas.
“A estratégia democrático-popular do PT se consolidou e hegemonizou política e ideologicamente as entidades – incluindo a UNE. A entidade, além de abaixar suas bandeiras também atuava pela desmobilização. Por muitas vezes, a base do movimento estudantil se mobilizou a contra as políticas neoliberais implementadas pelos governos Lula e Dilma, como a redução de verbas para as universidades federais; a privatização da gestão dos HUs; a terceirização dos serviços-meio nas universidades; a insuficiência das políticas de permanência e dos valores das bolsas. Encontrávamos, como adversários, as próprias entidades gerais, a partir da UJS e da juventude do PT, atuando diretamente para desmobilizar o movimento.
[…]
A consequência dessa submissão do movimento de massas à política institucional, foi colocar as entidades do movimento estudantil no caminho da irrelevância entre os estudantes, se tornando coadjuvante nas principais lutas da juventude e do ME nas últimas décadas, como junho de 2013 e as ocupações nas escolas e universidades de 2015 e 2016.”3
Vale ressaltar também que a hegemonia que essa esquerda alcançou nessas entidades não é orgânica. Falta transparência nos processos eleitorais e no funcionamento interno, sendo abundantes as denúncias de fraude nesses espaços.4
A UNE e o movimento estudantil universitário são mencionadas aqui justamente porque, dada a diversidade de movimentos de esquerda que os disputam, talvez sejam o exemplo mais claro do funcionamento da esquerda no Brasil. Tanto nesse caso quanto na política institucional, a esquerda da ordem, apresentando-se como “bons mocinhos”, tem repetidamente impedido a mobilização popular, despolitizado debates, promovido boicotes a outros setores da esquerda, ao mesmo tempo que se alia à direita e extrema-direita. Utilizam-se de quaisquer meios, éticos ou não, para permanecer no poder – custe o que custar.
Hoje, sem o alicerce do efetivo trabalho de base, limitada à mera manutenção do Estado e descomprometida com suas próprias pautas, a social-democracia já não convence a classe trabalhadora como antes, o que faz com que esta se volte à direita. Afinal, é a direita que tem efetivamente apresentado um discurso de viés anti-sistêmico, politizando, à sua maneira, o debate para avançar em suas pautas. Quem perde com esse avanço é justamente a nossa classe, as pessoas LGBTQIAPN+ o ensino público.
A Esquerda Deve se Pautar pela Esquerda
Em vez de recuar ou tentar se adequar às pressões moralistas, precisamos continuar e avançar! Diante do fracasso das conciliações, tornou-se evidente que é essencial voltarmos a ser uma esquerda que impõe suas posições. Sejamos um pouco mais “traveco-terroristas”, por assim dizer, e retomemos a luta contestando a ordem das boas maneiras e dos bons costumes, pois esta também faz parte do sistema de opressão sobre nossos corpos.
Defender Tertuliana Lustosa não é apenas uma questão de defesa da liberdade acadêmica, mas também uma batalha mais ampla contra o moralismo e a transfobia que sufocam qualquer forma de expressão que desafie a ordem estabelecida pelo capital. O caminho para a transformação social passa pelo enfrentamento direto desses preconceitos e pela construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva, que supere as divisões impostas pelo sistema sexo-gênero.
A defesa dos direitos de expressão dos grupos marginalizados em nossa sociedade deve ser inegociável, pois ela representa também a construção do Poder Popular em sua base. Devemos combater a falácia de que a academia é um templo monolítico inviolável e lutar pela Universidade Popular, que seja verdadeiramente inclusiva, crítica e sem medo de confrontar a normatividade imposta por um CIStema que serve apenas às elites.
A extrema direita não precisa de desculpas para nos atacar, mas nós precisamos de coragem para resistir, avançar e combater, ocupando todos os espaços, inclusive os acadêmicos, em defesa da emancipação da classe! Não se muda o mundo respeitando a opinião de quem nos oprime.