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Entenda por que o “Escola Sem Partido” é uma forma de censura
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Entenda por que o “Escola Sem Partido” é uma forma de censura

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Por Luis Ayala, militante da UJC-Brasil.

A esta altura, você talvez tenha ouvido falar em algum lugar sobre um projeto chamado “Escola Sem Partido”, ou poderá até mesmo considerar-se um profundo conhecedor deste projeto e convicto de que já tomou seu lado nesta história. Afinal, quando nos deparamos com qualquer coisa que influencie minimamente nossa vida, dificilmente somos neutros a ela, tendo em vista de que se trata de algo que nos fará bem ou mal de alguma forma. Neste caso, tomamos um lado, e inevitavelmente escolhemos entre duas opções: ficarmos do lado de quem está favorável à novidade, tanto no sentido de defendê-la ou mesmo sendo passivo diante de sua implementação, ou, em contrapartida, juntamente às demais pessoas que também são contrárias à novidade, nos opormos a ela por compreendê-la como nociva. Para resumir esta situação, podemos dizer que este pequeno exemplo nos revela uma coisa: tomamos “partido”, mesmo quando queremos falar sobre a permissão ou não de se falar em partidos.

O projeto Escola Sem Partido é resultado de um pequeno movimento iniciado em 2004, sem muito reconhecimento e sem considerável influência na época de seu surgimento. Nos últimos anos que antecedem o período do golpe de 2016, com o crescimento do conservadorismo e com o surgimento de páginas que circulam notícias com este viés (algumas destas páginas inclusive foram excluídas pelo Facebook por fazerem parte de redes de fake news), este movimento ficou mais conhecido e tornou-se projeto para ser votado e implementado em muitos municípios pelo Brasil. Mais recentemente ainda, durante o período em que Temer assumiu ilegitimamente o posto de presidente, esses grupos defensores do projeto chegaram a apresentar para o ministro da Educação desta gestão, representante dos interesses impopulares, o projeto para ser implementado a nível nacional, legitimando-o sob a alegação de que o projeto tem origem em “motivações pessoais”, de forma “neutra” e “apartidária”. Vale lembrar que, antes da proposta a nível nacional, este projeto foi apresentado pela primeira vez pelos deputados irmãos Carlos e Eduardo Bolsonaro, que o fizeram em nome de seu partido, da sua ideologia “liberal-conservadora”, durante seus mandatos na cidade e no estado do Rio de Janeiro.

Mas o que pretende o projeto afinal?

Seus objetivos são manifestos com frases como “pela descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas”, “pelo respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes”, “pelo respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, dentre outros não destacados no site do movimento, mas sempre afirmando questões como o apartidarismo e a neutralidade, em defesa uma suposta “pluralidade de ideias”. Partem do falso pressuposto de que a maioria dos professores são “de esquerda” ou mesmo “comunistas” com o objetivo de corromper a juventude e desvirtuá-la do caminho escolhido pelos pais, com seus valores morais transmitidos para os filhos, etc. (apesar de destacarem o “respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes”, subestimam o potencial de seus filhos se formarem com autonomia enquanto seres). Para testarmos os resultados práticos deste projeto, podemos nos debruçar em algumas das experiências que já foram feitas em alguns municípios e tiveram alguns resultados,  para fins de debate.

Em 2016, uma professora de sociologia chamada Gabriela Viola produziu uma música com a turma para facilitar o ensino da teoria social marxista, onde a letra continha um resumo muito simples e básico da concepção de Marx. Por este ocorrido, a professora foi afastada da docência em sua escola, e foi alvo de diversas agressões via internet. Porém, nenhum pai ou mãe foi conversar pessoalmente com a professora sobre o ocorrido.

Talvez, com este exemplo apenas, poderíamos pensar que o problema foi por ter Marx como autor estudado em sala de aula (que é estudado em sociologia assim como muitos outros autores, como Durkheim, Weber, etc), mas não é o que acontece. Junto com o combate à “doutrinação marxista” e a qualquer debate sobre política em sala de aula, tentam acrescentar na lista de rejeições uma tal “ideologia de gênero” que, pelo que parece para os defensores do projeto, é também uma “ideologia” que é dominante entre os professores, que a transmitem como forma de doutrinação também. Um exemplo disso ocorreu este ano, em Abril, onde o irmão mais velho de um aluno acusou uma professora de Novo Hamburgo (RS) de “incentivar a homosexualidade e o adultério” por responder a pergunta de seu irmão mais novo sobre o significado de “ideologia de gênero”. Mesmo que neste caso a professora não tenha sido penalizada institucionalmente, o post feito pelo difamador resultou em diversas ameaças via redes sociais e constrangimento público para a professora.

Uma informação que precisa ser acrescentada: muitos outros casos, como o mais recente envolvendo a deputada eleita este ano em SC, Ana Caroline Campagnolo (PSL), ocorrem antes mesmo que o projeto seja implementado legalmente, como se ele fosse já legitimado. Neste caso de SC, a deputada criou um canal e incentivou que os alunos filmassem seus professores em sala após as eleições, para publicarem sua imagem caso este fizesse algum comentário político dentro da sala. Neste caso, o MP já interviu e repudiou a ação da deputada, exigindo a exclusão do canal e o pagamento de uma indenização pelos danos causados contra os professores, como constrangimento, ameaças, danos morais, etc. Este ocorrido, além de absurdo, coloca os alunos em uma situação perigosa, pois configura-se como apologia a uma atividade criminosa, em que se filma em sala de aula uma pessoa sem sua autorização, além de provocar constrangimento ao professor no exercício de sua função e censurá-lo por medo da exposição e das agressões que são resultados desta. A propósito, a deputada foi acusada pela Promotoria de Justiça de Florianópolis de criar um “serviço ilegal de controle político-ideológico da atividade docente”, uma violação do exercício livre do pensamento tanto do professor quanto do aluno em aula e um desrespeito ao pluralismo de ideias (defendido pelo próprio projeto, que tem consequências contrárias).

A linha de pensamento favorável ao projeto, a grosso modo, defende que os professores apenas transmitam conteúdos para os alunos, e outras questões como sexualidade, moral, política, religião, etc., devem ser assuntos ensinados em casa. O ponto que queremos defender aqui é que proibir professores de circularem nestes temas na sua dinâmica de aula é sim uma forma de censura. É uma forma de amputar o papel do professor, que visa a construção de conhecimento concreto sobre as coisas da nossa vida; o conhecimento mais completo, articulado e relacionado com tudo em nossa volta, e isso envolve indissociavelmente a política, porque, por mais que se queira negá-la, é ela uma das determinantes da nossa vida social e inclusive decide sobre as nossas escolas..

Tentemos ver isto do ponto de vista do professor: conduzir uma aula é, dentre muitas coisas, transmitir conteúdos sistemáticos (não qualquer conteúdo, mas aqueles sistematizados, clássicos, essenciais na nossa história e indispensáveis para compreendermos a fundo nossa realidade atual), com um plano didático articulado, com determinada concepção pedagógica de fundo que é resultado da formação do professor durante toda sua vida, onde há o cumprimento de determinadas orientações e deve haver respeito à autonomia do professor para alcançar os objetivos apontados. Esses conteúdos são objetos de estudo que foram e são pesquisados nas universidades do mundo todo. No caso das humanidades (história, sociologia, filosofia, e outras áreas que são pesquisadas mas não são disciplinas no Ensino Médio, como Economia) são coisas que aconteceram  ou surgiram em algum momento e em algum lugar específicos; ideias produzidas em algum momento e lugar sob circunstâncias que são também produto de determinado contexto e lugar. Este momento e lugar localiza-se em um contexto político específico que determinou ou minimamente influenciou os resultados, que são os objetos que estudamos, os conteúdos. E a política nisso tudo? Ela esteve presente este tempo todo em tudo; perpassando todos os aspectos da vida humana, e se quisermos de fato aprender qualquer coisa concretamente, precisamos saber de tudo sobre o objeto que se estuda e também tudo aquilo que o envolve e o influencia, especialmente o contexto político, forças opostas à hegemonia da época, conflitos teóricos, etc. A escola é política, porque é determinada pela política. Os conteúdos do currículo são escolhidos politicamente. A nossa casa é resultado de condições econômicas e políticas. Não existe possibilidade de abordarmos acerca da nossa existência sem falar de política. Qualquer conteúdo, área ou tema que se queira remover da escola e que seja central para entendermos nossa realidade é uma forma de nos manter ignorantes e passivos. Neste sentido, negarmos a política em qualquer lugar, inclusive na escola, é como limitar gravemente a formação de nossos jovens enquanto agentes sociais, críticos, com discernimento, com conteúdo e qualificação para agirem em sociedade com uma ampla compreensão de como esta funciona, visando sempre sua transformação progressiva para evoluirmos humanamente como um todo.

Cortar a política como tema de discussão na escola é colocar um estribo nos alunos, assim como é também uma censura ao professor que tem como objetivo a construção rigorosa de conhecimento com os alunos e a promoção do exercício do debate e da reflexão. Se há alguma dúvida de que a intenção do novo governo é de fato limitar a formação da nossa juventude, lembremos que este projeto não é a única coisa que virá: já temos junto com a iminência deste projeto a nova Base Nacional Comum Curricular implementada pelo governo Temer; uma base curricular feita sem considerar absolutamente nenhuma proposta de professores, alunos e pesquisadores da área da educação; que dissolve disciplinas como Filosofia e Sociologia, dentre outras, que ficam sem conteúdos definidos nos currículos, além de ter por trás uma concepção pedagógica discutível que segue modelos propostos de fora do país para a satisfação de interesses que não são nossos. É uma base que não tem uma relação de continuidade nenhuma com a base da etapa anterior ao Ensino Médio, e inclusive é contraditória com a base da etapa do Ensino Infantil e Fundamental. Para fechar o combo triplo, temos também a reforma do Ensino Médio, que propõe uma aparência de liberdade de escolha das disciplinas mas que por trás é uma forma de transformar as escolas em locais para a formação de seres com habilidades e competências necessárias para as demandas do capital; demandas de força de trabalho com as qualidades exigidas para a superexploração nos dias de hoje no Brasil. A escola não será mais o espaço de transmissão da cultura humana para as gerações futuras, onde os alunos recebem o acúmulo cultural produzido durante nossa história, dando sequência ao processo contínuo de “humanização” dos humanos, digamos assim, para depois poderem escolher onde querem se aprofundar. Artistas? Filósofos? Cientistas sociais? Isso não tem o valor que o mercado exige, e, inclusive, é contrário a estes interesses pelo fato de revelarem de alguma forma este o conteúdo e o movimento por trás das coisas que nos aparecem nas notícias.

Precisamos destruir esta caricatura que estão fazendo sobre Partido. Partido, no seu sentido mais simples e puro, é formado por um conjunto de pessoas que têm afinidade ideológica; ideias, concepções de realidade e projetos semelhantes, que se unem para se fortalecerem para a transformação da realidade de acordo com suas ideias. Também significa sair de casa, deparar-se com um mundo desumano e desumanizante e tomar partido – tomar um lado para agir. Num sentido mais profundo (que inclui apenas partidos progressistas), o partido tem a função de instrução social. Um bom partido é aquele em que seus membros aproximam-se da população no geral, de estudantes, trabalhadores, desempregados, etc., ouvem suas demandas, suas carências, necessidades mais imediatas, seus sonhos, e, em conjunto com esta base, tenta apontar para o caminho para se alcançar estes objetivos populares; é pegar na mão dessas pessoas e juntos, com muito estudo e movimentação, ir para além da aparência da vida imediata, em que nos deparamos com as dificuldades de todos os dias, e perceber as causas, os fundamentos destas dificuldades para destruí-las pela raiz, sem negar as demandas do presente.

Portanto, se olharmos para a nossa história, veremos que todas as transformações pelas quais passamos para que pudéssemos progredir minimamente (que fique bem explícito o minimamente) quanto aos nossos direitos, melhores condições de vida, de trabalho, etc., são resultados das ações de pessoas que tomaram partido. É o ato histórico de negar, transformar a realidade de cada época organizadamente, seguindo um ideal a ser alcançado que, com o passar da história, tem apontado cada vez mais nitidamente qual é o caminho que devemos seguir para alcançarmos efetivamente estes ideais. Hoje nos encontramos mais cientes do que nunca das mazelas da sociedade e qual a raiz da opressão, da desigualdade, da exploração, etc. Para continuarmos progredindo para compreender ainda melhor nossa realidade para transformá-la concretamente, precisamos levar a sério o significado de “concreto”, onde compreendemos algo concretamente quando temos a dimensão da totalidade das coisas que envolvem aquilo que queremos compreender, por trás da aparência, do que está na nossa cara. A política é uma destas coisas que permeia tudo e, sem compreendermos ela, não compreenderemos nada na sua essência. É a negação de parte fundamental do que nos torna humano dentro da escola.