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Nota Política da UJC UFSC – EaD em cursos presenciais: Análise da minuta da UFSC e elementos para o debate

Nota Política da UJC UFSC – EaD em cursos presenciais: Análise da minuta da UFSC e elementos para o debate

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Nota do Núcleo UFSC Maria Verzola

Em agosto, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) completou um ano de Ensino Remoto Emergencial (ERE). Já são três semestres nessa modalidade de ensino, apresentada como o “tapa-buraco” para o problema da impossibilidade de reunião presencial para as atividades de ensino da universidade. Em julho de 2020, a RN 140 garantia que o Ensino Remoto teria apenas “caráter excepcional e durante o período da crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19”, uma mentira que já era denunciada desde o início das discussões sobre o retorno das atividades pedagógicas de maneira não presencial.

Hoje, vemos cada vez mais como o argumento da “excepcionalidade” foi, na verdade, uma forma de aplicar à universidade reformas que nada tem de “emergenciais”, mas buscaram e continuam a buscar condicioná-la a novas formas de trabalho docente e de relações pedagógicas (poderíamos dizer até mesmo antipedagógicas) que vieram para ficar. A “normatização” do Ensino Remoto é vista, recentemente, nas alterações aprovadas – de forma autoritária, é preciso ressaltar – nas Resoluções 015 e 095, que regem a Pós-Graduação latu e strictu sensu na UFSC. É vista também na proposta do “REUNI Digital”, apresentada pelo MEC em maio de 2021, e que prevê a expansão de vagas no ensino superior por meio do Ensino a Distância e a criação de uma “Universidade Federal Digital”. Todas essas propostas confluem para tornar permanente as conformações impetradas à contra-gosto pelo Ensino Remoto nos nossos cursos e na vida universitária em geral.

Ao contrário do que dizem os defensores do Ensino Remoto, ele não será passageiro. A mais nova evidência disso é a proposta de minuta do ensino semipresencial que será discutida e votada na Câmara de Graduação (CGrad) da UFSC. Essa minuta é a regulamentação de que todos os cursos presenciais da nossa universidade possam ofertar até 20% de toda a sua carga horária na modalidade à distância, sem deixar de ser cursos “presenciais”. Essa modificação vai ao encontro da Portaria nº 2.117, de 6 de Dezembro de 2019, do MEC, assinada pelo nosso conhecido Abraham Weintraub, e que permite, legalmente, alterações que abrem espaço para até 40% da carga horária total dos cursos presenciais como EaD nas Universidades Federais.

O avanço do EaD não é uma política que surge com o Ensino Remoto; afirmar isso seria trocar as causas pelas consequências. Não queremos dizer que a votação dessa minuta, colocada para apreciação agora, decorre unicamente do Ensino Remoto, mas sim que tanto o ERE quanto a transformação dos nossos cursos presenciais em semipresenciais respondem a um mesmo projeto educacional, que condiciona a Universidade aos interesses de determinadas classes sociais, em detrimento de outras. Um projeto classista que precisa de uma universidade subordinada aos interesses mercantis orientados para a conformação do trabalhador à exploração capitalista e à produção de lucro. Um projeto que vê no EaD a forma não só de “baratear” os já escassos investimentos em educação, mas também de destruir no espaço da Educação Superior – e também da educação básica e infantil – as alternativas à barbárie societária capitalista.

A proposta de minuta a ser apreciada na CGrad é a expressão desse projeto classista, e precisa ser rechaçada pela comunidade universitária comprometida com uma educação popular e emancipatória, a serviço da classe trabalhadora e não de seus algozes. Nesse movimento de resistência aos ataques, apresentamos, na sequência, contribuições para o debate acerca da Minuta e dos próximos passos para a luta contra toda herança do Ensino Remoto e contra o avanço do EaD pelo Movimento Estudantil da UFSC.

Análise da Minuta

A minuta que nos é apresentada hoje está em construção há mais de um ano. Quando da publicação da Portaria nº 2.117 do MEC, não tardou para se constituir um Grupo de Trabalho na UFSC que vem, desde então, buscando operacionalizar essa política em nossa universidade. Ressaltamos que tal Portaria do MEC não afirma nenhuma obrigatoriedade das universidades aderirem à tal política; é uma portaria de conteúdo opcional. Ou seja: existem em nossa universidade grupos extremamente interessados na aprovação de tal projeto e na transformação de nossos cursos presenciais em cursos semipresenciais. Que grupos são esses? E aos interesses de quem estão servindo?

Como um dos pressupostos para a aprovação de tal minuta, é destacada “a necessidade de definição de normas que regulamentem a oferta de carga horária na modalidade de Ensino a Distância (EaD) nos cursos de graduação da UFSC” (destaque nosso). Desse enunciado introdutório, já precisamos ressaltar o termo “necessidade” e questioná-lo: quem tem necessidade disso? 

Fica claro ao longo do texto a concepção tecnicista de educação que orienta tal proposta. Já no Art. 3º, afirma-se que a modalidade a distância se utiliza de “meios e tecnologias de informação e comunicação (TIC) que garantem a presencialidade e o processo de ensino-aprendizagem” (grifo nosso). Isto é, os meios tecnológicos são tomados não como ferramentas auxiliares ao processo pedagógico, mas sim como os próprios garantidores desse processo. 

Afirmamos essa minuta como uma das heranças do Ensino Remoto não por acaso. Vários dos termos e conceitos que foram cunhados para esse ensino dito “emergencial” reaparecem agora num documento de política educacional nada “excepcional”. Se antes do ERE nunca tínhamos ouvido falar de encontros “síncronos” e “assíncronos”, agora cada vez mais tais noções passam a ser impostas como normais para se referir às aulas e atividades pedagógicas. 

O Art. 15 versa sobre as responsabilidades do professor de uma disciplina total ou parcialmente à distância. Ressaltamos, aqui, a inclusão da noção de “tutoria” como uma responsabilidade do professor, definida em separado a seguir, no § 1º: “a tutoria consiste na mediação de todo o desenvolvimento da disciplina, na orientação aos alunos em seus estudos e atividades, no esclarecimento de dúvidas, na explicação de questões relativas aos conteúdos abordados e na avaliação do desempenho dos alunos em todo o processo de aprendizagem”. 

Questionamos: tudo isso já não é, na verdade, uma responsabilidade do docente? Por que dividir tais responsabilidades e classificá-las como “tutoria”? E respondemos: porque por mais que nessa minuta a tutoria seja colocada como responsabilidade do docente, o projeto político-pedagógico que orienta o documento objetiva, no limite, a fragmentação do trabalho docente e a sua desresponsabilização sobre as funções citadas para que outro trabalhador os assuma, sob o título profissional de “tutor”. É uma forma de, no futuro, retirar o controle do docente sobre a totalidade do processo de ensino, que abarca a mediação, a orientação e a avaliação, e criar um novo posto de trabalho, que nos locais em que já existe, é ocupado por trabalhadores mal-remunerados – quando remunerados -, geralmente estagiários ou estudantes da própria instituição. 

A respeito disso, destaca-se o aumento da sobrecarga do trabalho docente, que já têm sofrido diversas baixas devido à pressão por produtividade e por cada vez mais funções sob responsabilidade de um só profissional. Se por um lado, a divisão do trabalho docente por “ensino” e “tutoria” fragmenta o trabalho, dando abertura para a censura e o rompimento de laços entre docentes e discentes, ao mesmo tempo essa própria fragmentação contribui para que docentes estejam cada vez mais cheios de tarefas a serem entregues no final de cada semestre. Exemplo disso é que a minuta aponta que todos os aspectos de construção da disciplina ministrada à distância serão de responsabilidade docente, colocando sob um só profissional o peso de uma estrutura nunca antes requerida. A fragmentação da função docente caminho lado-a-lado com a superexploração desse profissional.

Já o Art. 19 regulamenta que uma mesma disciplina possa ter diferentes “versões” (presencial, semipresencial e totalmente a distância) dentro de um mesmo curso ou departamento. Isso significa que um mesmo currículo poderá formar estudantes que optaram por fazer disciplinas em modalidades significativamente diferentes. Além de criar uma desigualdade interna no decorrer do curso, isso só é possível se parte-se do pressuposto que uma disciplina à distância não tem nenhuma diferença do que uma disciplina presencial, como se fossem equivalentes. Não temos aqui nenhuma espécie de preconceito essencialista com o EaD, como se a natureza do EaD fosse ruim em si mesma, mas é inaceitável igualar duas modalidades tão distintas de organização e execução do processo pedagógico, ignorando suas diferenças e especificidades, e como tais diferenças impactam a formação do estudante. A educação à distância prevê concepções com as quais o ensino presencial não condiz, tais como a aprendizagem mediada por plataformas, o autodidatismo e a disponibilidade total de docentes para tirar dúvidas. Mais uma vez, nota-se o impacto que este tipo de disciplina terá sobre profissionais da educação, além de todas as questões pedagógicas que envolvem a implementação de EaD aos tropeços em cursos presenciais.

O Art. 21, ao falar da computação de horas de ensino para os docentes, se refere a disciplinas “financiadas por agências de fomento”, sem, em nenhum momento da minuta, informar ou definir o que seriam estas. Por que haveriam de existir disciplinas a distância financiadas por agências de fomento? Quais agências seriam estas? O CNPq ou a CAPES? Ou está se falando de fundações privadas? Se for destas últimas, por que seria do interesse delas financiar a realização de disciplinas em EaD nos cursos presenciais da universidade? 

Trabalho docente na minuta de implementação de disciplinas EaD nos cursos de graduação da UFSC

O Art º3 da minuta conceitua as atividades a distância como atividades de ensino que utilizam das TIC (tecnologias de informação e comunicação) como forma de garantia da presencialidade e do processo de ensino-aprendizagem. Segundo diversos pesquisadores do campo da educação, o Ensino à Distância como modalidade educacional já implementada implica uma perda de qualidade na educação e nas relações de ensino-aprendizagem, justamente porque nele se perde o caráter de presencialidade e de troca entre discentes e docentes. A presente minuta debate uma proposta de Educação à Distância que não chega nem perto do que é de fato esta modalidade – que já é precarizada. 

Estamos longe de defender a EaD, contudo alguns apontamentos são importantes para compreendermos o quão precarizada é a proposta educacional da presente minuta. Além de professores, o EaD pressupõe a presença de professores tutores, redatores, designers, pedagogos, programadores e tantos outros profissionais que permitem a criação de um suporte de ensino pelo qual estudantes possam navegar e se apropriar de conhecimentos de forma próxima ao autodidatismo. Este é o primeiro furo da presente minuta: embora as disciplinas possam ser criadas coletivamente, a minuta afirma que todo o trabalho da disciplina será de responsabilidade de quem a ministrar (ver Art. 15). Dessa forma, a profissão docente, que já sofreu diversos ataques com a implementação forçada do ensino remoto emergencial sem quaisquer apoios sérios a alunos e professores, tem mais um enfrentamento: a curricularização da precarização do ERE na forma de disciplinas isoladas a serem oferecidas no formato a distância. 

Ainda sobre a questão da quantidade de trabalho, destaca-se a questão da tutoria: em termos práticos, a tutoria já faz parte do cotidiano de qualquer docente da graduação na universidade. Contudo, na forma como é apresentada na minuta e pensando na experiência recente do ensino remoto, o estabelecimento da tutoria como obrigação prevê mais horas de trabalho docente para suprir as diversas dúvidas e déficits que este ensino a distância produz. Além disso, a minuta aponta que a habilitação para ministrar as disciplinas a distância será “cursar ao menos uma capacitação específica em educação a distância ofertada pelo programa de formação continuada da UFSC”. Ou seja, a partir daí a universidade passa a formar seus docentes para a educação a distância, em detrimento de outras áreas que poderiam receber investimentos, como a educação humanizada, o combate à LGBTfobia, ao racismo e à violência contra a mulher, que são problemas extremamente latentes entre os docentes universitários. 

Outro ponto de extrema importância é que a minuta informa que haverá acréscimo de encargos aos docentes que ministrarem aulas a distância, estabelecendo uma relação direta entre o aceite dessa nova modalidade e melhoras salariais (Art. 20.). Ainda, o Art. 21 aponta que “quando financiadas por agências de fomento, as disciplinas de graduação não computarão encargos de ensino […] em face de estes já perfazerem bolsa pela atividade”. Ou seja, a minuta também pressupõe o financiamento de disciplinas por órgãos externos. Assim, tendo em vista o cada vez menor orçamento das agências públicas de fomento à pesquisa, como CAPES e CNPq, seria ingênuo não vincular este ponto à oportunidade de dar espaço público para o interesse privado, na forma de disciplina. Afinal, “quem paga a banda escolhe a música”. 

A cada ponto da minuta fica mais evidente que esta é um marco na investida capitalista para dentro das universidades federais: professores mais sobrecarregados, com cada vez menos poder e autonomia sobre suas próprias aulas, sendo censurados e tolhidos de sua liberdade de ensinar enquanto “novas aprendizagens” mascaram a privatização que vem entrando pela porta da frente.  

O ensino remoto emergencial foi imposto de forma autoritária em toda a educação básica brasileira, e nas universidades poucas foram as discussões reais que precederam a implementação dessa modalidade de “ensino”. O que vemos com ações como a discussão desta minuta é a tentativa de curricularizar a precarização e se utilizar de um contexto que ainda está gerando muita dor a milhares de brasileiros (afinal a pandemia ainda não acabou) para “passar a boiada” da privatização de fora para dentro, tolhendo o pensamento crítico e utilizando do espaço público como um trampolim dos interesses do capital. Temos aprendido uma dura lição com a experiência do ERE e não podemos repeti-la com a aceitação da EaD na universidade. 

Sobre o avanço do EaD no sistema educacional brasileiro

Vemos, portanto, o caráter completamente deletério e antipopular dessa minuta, com diversos dos retrocessos à concepção de docência, currículo e ensino que arrasta consigo. Concepções, estas, que se fundamentam numa teoria educacional tecnicista, cujos objetivos em nada coadunam com as necessárias tarefas democráticas e populares da universidade brasileira. Pelo contrário, tal proposta aprofunda os obstáculos à democratização de uma educação superior de qualidade e compromissada com a superação das mazelas do povo trabalhador brasileiro.

É uma proposta, como dito, de profundo caráter tecnicista. Ela atualiza a teoria educacional que baseou todas as reformas antidemocráticas na educação brasileira do período da ditadura empresarial-militar, desde a reforma do ensino básico, até a Reforma Universitária de 1968, que instituiu os mais variados dispositivos para a elitização da universidade brasileira, como o vestibular classificatório, e uma estrutura centralizadora e autocrática de gestão institucional, com a perseguição ao movimento estudantil autônomo e o apagamento da democracia universitária. É uma concepção educacional que não nos serve, e precisa ser rechaçada na integralidade!

Os avanços tecnicistas, porém, não aparecem por acaso. Estão eles associados ao projeto histórico da classe dominante brasileira – nomeadamente a burguesia agroindustrial, comercial e  financeira associada ao capital internacional e apoiada pelo exército brasileiro – para a universidade de nosso país. Como dito, um projeto classista que busca não a produção científica nacional de forma soberana e associada a um projeto de desenvolvimento social, mas antes a conformação de nosso ensino superior para formar trabalhadores integrados e obedientes aos centros de produção científica e tecnológica do capitalismo. 

O EaD se associa a esse projeto há mais tempo do que pode parecer, mesmo antes da existência de computadores. Formação por correspondência, por rádio, pelo cinema ou por tele-ensino marcaram propostas educacionais ao longo de todo o século XX. A internet e as plataformas digitais só deram nova roupagem a esse aspecto do projeto educacional burguês. 

Sempre associado a um falso discurso de “ampliação do acesso” à educação, o EaD na verdade foi, e continua a ser, paradigmático das desigualdades sociais de classe do nosso país. A escola e a universidade pública brasileira foram palcos de profundas disputas ao longo de toda nossa história, e a batalha por sua democratização e universalização é uma delas. As forças populares defenderam, por anos e anos, uma escola pública única e universal. Única pois deveria existir sem distinção entre escolas “para ricos” e “para pobres”, divisão que nasce junto com as sociedades de classes. Universal pois deveria atender à totalidade da população brasileira, independente de classe, raça, religiosidade ou regionalidade. 

O processo de expansão do ensino público brasileiro se deu, principal e contraditoriamente, durante a ditadura empresarial-militar. Contudo, foi uma expansão que não atendeu às reivindicações de uma escola única, e portanto aprofundou as desigualdades educacionais do país. Para os filhos da burguesia, permitiu-se uma escola de formação humanista, científica e tecnológica. Para os filhos das trabalhadoras e trabalhadores, criou-se uma escola pública precária, baseada no tecnicismo e voltada à formação técnica e moral da força-de-trabalho. Não é por acaso que as propostas de EaDização sempre foram orientadas para a escola pública onde estudavam e estudam os filhos da classe trabalhadora, enquanto não é o mesmo processo que vemos nas escolas “de elite”. Tal desigualdade, longe de se ver superada, persistiu ao longo de todo o pós-ditadura e perdura até hoje.

A Constituição Federal de 1988 e as últimas duas décadas de governo democrático-popular conseguiram fazer a educação brasileira avançar frente às suas tarefas democráticas. Mas não sem contradições. Os avanços democrático durante os governos de Lula e Dilma foram acompanhados, passo a passo, por um avanço – por vezes tão intenso quanto o primeiro – das garras reacionárias e empresariais sobre a educação brasileira. Não é a toa que o EaD no ensino superior cresceu tanto no Brasil durante os mandatos de Lula, permitindo lucros exorbitantes para empresários da educação e criando uma verdadeira burguesia monopolista educacional por aqui, à exemplo do maior conglomerado educacional do mundo, a Cogna Educação (antiga Kroton).

O avanço empresarial, portanto, não é um movimento recente, ou que se inicia com o Golpe de 2016. Contudo, é impossível não reconhecer que esse avanço adquiriu novas tendências, mais abertas, reacionárias e agressivas, com a ascensão de um governo neoliberal “puro sangue” com Temer. O desinvestimento público na educação caminha junto com a abertura, cada vez maior, de espaços para serem ocupados por empresas privadas no fornecimento de insumos, materiais e trabalhadores terceirizados às escolas e universidades, e até mesmo na sua gestão, por meio de Organizações Sociais e fundações.

O EaD ocupa lugar de destaque dentro desta estratégia empresarial que objetiva, em última instância, a privatização do sistema educacional brasileiro. Em partes, porque os mesmos que patrocinam o lobby para o EaD são aqueles que vão encher os bolsos vendendo equipamentos, materiais e cursos de formação para as universidades e estudantes. Por outro lado, todas as flexibilizações e fragmentações da gestão universitária, dos currículos ou da função docente que vêm associadas às políticas do EaD são estratégicas para que, cada vez mais, também o conteúdo do ensino seja mais fácil de ser moldado segundo os interesses e ditames da classe dominante.

É emblemático que tal proposta da minuta venha justamente nesse momento para apreciação. Não tem um mês que a UFSC aprovou as alterações nas resoluções 015 e 095 da pós-graduação, abrindo as portas para a uma entrada violenta dos interesses mercadológicos nos cursos de especialização, mestrado e doutorado da nossa universidade pública. Dentre as mudanças, permite-se a permanência para além da pandemia de várias das transformações – pretensamente emergenciais – adotadas no último ano de ensino remoto, como reuniões e orientações à distância. 

Some-se a essa conjuntura “curiosa” o projeto denominado REUNI Digital apresentado pelo MEC há cerca de 3 meses para as universidades. Esse projeto prevê a expansão de vagas na universidade pública exclusivamente por meio do EaD, inclusive com a criação de uma Universidade Federal Digital, que só ofertaria cursos à distância. Era de se imaginar que tal projeto viesse condicionado a um aumento do investimento público para seu desenvolvimento, mas não é o que está previsto. As universidades deveriam adotar o REUNI Digital sem nenhuma contrapartida de investimento, o que significaria, na prática, em tempos de destruição dos orçamentos das UFs, o abandono dos cursos presenciais.

Se dermos um passo um pouco maior para trás, lembramos da proposta do Future-se, em 2019. O EaD não era seu núcleo central, mas as propostas dessa reforma universitária rechaçada pelos estudantes mobilizados nos Tsunamis da Educação, e pela população brasileira em geral, também são fundadas num radical tecnicismo e numa orientação autocrática e privatista de gestão institucional. 

O contexto educacional, tanto do governo fascista de Bolsonaro-Mourão quanto dos anos anteriores, não nos permite mentir: há um projeto radical de precarização e privatização da educação brasileira em curso, do qual o EaD é peça fundamental. Por trás dos discursos deslumbrados e fetichistas, que colocam na tecnologia a salvação da educação e do país, esconde-se o compromisso com uma escola tecnicista que objetiva unicamente a formação de uma mão-de-obra abundante, barata, alienada e domesticada. 

Também não é mera coincidência que, salvo o Future-se, os exemplos citados tenham vindo à tona durante a pandemia da COVID-19 e, mais especificamente, quando as universidades vivenciam a catástrofe pedagógica do Ensino Remoto. Ademais, a própria “facilidade” e coordenação para a aprovação do ERE por todas as universidades do país aponta para a associação entre esse “tapa-buraco” para os problemas pandêmicos e uma política educacional que visa a destruição do caráter público das universidades federais. 

Ensino Remoto e EaD

Quando da adoção do Ensino Remoto, há pouco mais de um ano, seus defensores “à esquerda” faziam questão de pontuar que o ERE não era igual ao EaD. Hoje, os defensores do EaD utilizam do mesmo argumento para defender propostas como o REUNI Digital e a minuta que analisamos. No primeiro caso, a distinção era feita pois mesmo os esquerdistas que defendiam a adoção “emergencial” do ER se colocavam contrários à expansão do EaD por entender seu caráter excludente. Já no segundo, a distinção existe porque depois de um ano com estudantes e professores sobrevivendo aos malefícios desse modo de ensino, não há quem defenda sua perpetuação, mas mesmo assim quer defender a expansão do EaD sobre os cursos presenciais. 

E é preciso, sim, que se faça uma distinção entre EaD e ensino remoto. Contudo, fazer essa separação não pode significar apagar todas as semelhanças e convergências entre as duas modalidades de ensino, que são muitas. Uma distinção que não ignore o que existe de EaD dentro do ERE, e nem o que existe do ERE dentro do EaD. 

EaD e Ensino Remoto são, ambos, modalidades de educação específicas. O conceito de modalidade de educação é reconhecido na LDBEN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e se refere a diferentes formas de organização do processo de ensino aprendizagem. Outras modalidades existentes e reconhecidas são a educação indígena, educação quilombola, educação especial,  educação do campo e educação de jovens e adultos. O Ensino Remoto, por seu caráter “excepcional”, não é uma modalidade reconhecida, mas podemos entendê-lo assim uma vez que visa oferecer a educação formal (no nosso caso, de ensino superior) por meio de uma organização específica (a distância, por aulas síncronas e assíncronas, num calendário mais curto, e mais) dos seus processos de ensino-aprendizagem.

A educação a distância, por sua vez, é uma modalidade reconhecida e que historicamente construiu uma estrutura organizativa própria do processo pedagógico. Como apontado anteriormente, o EaD existe desde muito antes da invenção de computadores, não sendo incomum ouvir relatos, no Brasil, de pessoas que estudaram por tele-ensino ou por correspondência, especialmente para cursos de especialização ou supletivos. 

Contudo, o debate que existe, hoje, não é sobre a validade ou não do EaD como uma modalidade. O que interessa é o projeto educacional que se impõe por meio da expansão do EaD. Não podemos analisar o EaD no abstrato, sem considerar as condições concretas que determinam o seu uso atualmente. Como Marx aponta sobre a maquinaria n’O Capital, o avanço tecnológico e o uso de máquinas não é, em si, ruim e prejudicial; o que é danoso é o uso capitalista das máquinas e da tecnologia, pois são utilizadas por uma classe que precisa reproduzir as condições de reprodução social para a sua dominação. O mesmo vale para o EaD, pois assim como a maquinaria na indústria, a tecnologia que permite um ensino à distância é ferramenta, e pode receber diferentes usos. Na sociedade capitalista, de hegemonia burguesa, quem vai definir, dominantemente, esses usos, é a burguesia. 

Nesse sentido, a pergunta que se impõe para discutir o avanço do EaD, hoje, é: a qual projeto de educação e de sociedade o ensino mediado pelas tecnologias educacionais serve. É para um projeto popular, que visa garantir a humanização de todos e todas por meio da apreensão dos conhecimentos acumulados historicamente pelo gênero humano e a formação para o trabalho livre, consciente e socialmente necessário? Ou, pelo contrário, o EaD é aplicado para formar estudantes alienados, com conteúdos mínimos necessários para a sociabilidade do capital e para o trabalho servil e precarizado do capitalismo dependente?

Claramente, como tentamos demonstrar anteriormente, a resposta é essa última. O EaD não se vincula a projeto emancipador e popular de educação. Quem patrocina o avanço do EaD são os grandes empresários da educação e suas “organizações da sociedade civil”, como o Todos pela Educação, que nada têm de compromisso com a luta pela emancipação dos oprimidos e dos explorados. Pelo contrário, por trás de seus discursos cínicos sobre a “inclusão” e a “inovação” na educação, esconde-se um projeto educacional que continua a defender a escola como reprodutora das desigualdades sociais do capitalismo.

Bem, e o que tem o ERE a ver com isso? Tudo. Afinal a adoção dessa modalidade “emergencial” de ensino foi adotado por um ideário que dizia que “a universidade não pode parar”. Isto é, “não pode parar” de funcionar na sua função de reprodução social, produzindo mão-de-obra e produtos e serviços que servem à acumulação capitalista. Até porque a universidade nunca parou, mesmo com o cancelamento das atividades presenciais.

O que se perde de vista nessa argumentação é que o ERE não aparece isolado do seu contexto maior, que antecede à pandemia e se complexifica com ela. No caso educacional, um contexto de avanço das reformas empresariais e do EaD. É essa conjuntura de ofensiva burguesa sobre a educação que vai condicionar a forma e o conteúdo do ERE, independente de suas intenções mais abnegadas.

Vemos isso pois para o ERE acontecer dentro da universidade federal, foram necessárias diversas mudanças que formalizaram os interesses do capital na educação pública. Um exemplo introdutório é a adoção de plataformas que possibilitam o ensino e a comunicação de professores e estudantes na modalidade a distância aumentou as possibilidades de lucro das empresas privadas dentro da instituição de ensino superior. Com a utilização das plataformas online, o espaço físico da universidade também não exigiu os mesmos investimentos de antes. Isso, conforme os interesses do próprio governo federal que já realiza profundo desinvestimento no ensino nacional, favorece os cortes orçamentários destinados à instituição. Outros exemplos, não tão diretos, dizem respeito à própria organização do processo pedagógico, como a adoção de novos termos (síncrono, assíncrono, tutoria) para a estruturação de planos de ensino, a conformação de uma mentalidade de que o presencial pode ser substituído pelo formato à distância/remoto, a redução de conteúdos das disciplinas para dar conta do semestre reduzido, o aumento do tempo exigido ao trabalho docente e de estudo e a desorganização dos movimentos sindicais e estudantil na universidade.

Dessa forma, vemos como o ERE e o EaD, no contexto educacional brasileiro, servem a um mesmo projeto educacional, mesmo com suas especificidades. Pouco nos serve o debate sobre a validade ou não do EaD, se nessa modalidade é possível ensinar e aprender com qualidade e se é possível formar sujeitos à distância. Sem considerar a dinâmica real dos múltiplos fatores que determinam a luta de classes no nosso país, essas discussões acontecem no vácuo, num mundo idealizado que não existe. E, por isso mesmo, servem aos interesses da classe dominante, porque além de mascarar os verdadeiros elementos por trás do avanço do EaD, atuam para desmobilizar a classe trabalhadora na luta contra esse avanço.

Considerações finais

Em 25 de março de 2020, logo no início da pandemia, o Banco Mundial lançou um documento direcionado ao Brasil sugerindo a manutenção de práticas de ensino à distância mesmo após o fim da pandemia de COVID-19. No texto intitulado “Políticas Educacionais na Pandemia do COVID-19: O que o Brasil pode aprender com o resto do mundo?” são feitas várias orientações acerca do fechamento das instituições de ensino e das oportunidades que são abertas para o Ensino à Distância, deixando explícito a seguinte política: “Em termos pedagógicos, é crucial avaliar quais práticas do ensino a distância podem ser mantidas, se beneficiando da estrutura posta em funcionamento durante a pandemia.” 

Ou seja, utilizando-se de todo esse processo de ensino remoto deveria-se preparar para a implementação permanente do EaD, e é exatamente isso que estamos observando atualmente. Mais uma vez, a cartilha do Banco Mundial aparece em nosso cotidiano, o mesmo grupo que fomenta ataques imperialistas e projetos de privatização. Não é à toa que recentemente o Banco Mundial subsidiou um empréstimo para a compra de equipamentos digitais para os professores em São Paulo, que no Amazonas uma plataforma de educação com servidores da Amazon estará disponível para cerca de um milhão de estudantes do ensino médio, que a Microsoft doou R$ 15 milhões para o Governo de SP fornecer o acesso às suas plataformas de educação online e treinamento para os professores.

A evasão do ensino presencial por conta dos desinvestimentos públicos será mais uma desculpa para a digitalização privatizada do saber. Menos formação social e pensamento crítico, mais lucro para conglomerados e ensino tecnicista voltado ao mercado de trabalho.

Buscamos expor ao longo do texto como a minuta atualmente apresentada para apreciação na Universidade Federal de Santa Catarina se relaciona com a política educacional brasileira e suas disputas históricas e recentes. Se somos contrários à tal minuta, não é por simples oposição em abstrato, e sim porque fazemos a defesa de um projeto educacional completamente oposto aos princípios apresentados nessa proposta. 

O projeto educacional, universitário e de sociedade que a União da Juventude Comunista defende se caracteriza pela construção de um conhecimento verdadeiramente ligado às necessidades e demandas da classe trabalhadora. No atual momento de desmonte da educação pública, ataques à autonomia universitária, discussões limitadas pela falsa democracia universitária (que carrega aspectos da ditadura militar), precisamos criticar com profundidade e firmeza todas as tentativas de prejudicar ainda mais o processo de ensino-aprendizagem.

As iniciativas do MEC de digitalizar o ensino presencial em um país marcado pelo subdesenvolvimento, avanço do capital financeiro sob todos os aspectos da vida e políticas de austeridade na verdade colocam o ônus de acesso à educação sob os indivíduos, algo que de modo algum deve acontecer. Dessa forma, denunciamos e criticamos todas essas políticas destrutivas para avançar na construção de outro modelo de educação, na luta cotidiana por um modelo de educação popular! 

BASTA DE PRECARIZAÇÃO! EAD NÃO!

PELA UNIVERSALIZAÇÃO DO ENSINO PRESENCIAL!

POR UM ENSINO EMANCIPADOR E NÃO-TECNICISTA!

POR UMA UNIVERSIDADE POPULAR!