
Por Guilherme Corona, militante da UJC na Bahia
É muito comum, no trabalho de organização, referir-se a uma profissionalização do trabalho, muitas vezes como sinônimo de melhoria qualitativa e/ou quantitativa, e geralmente indicando a necessidade de superar uma fase artesanal. Mas essa terminologia, usual no debate marxista em relação à formação do capital industrial e da divisão do trabalho, não nos parece ser utilizada com compreensão da sua totalidade e das suas implicações na práxis.
Resgatemos, então, o debate de Marx, realizado no capítulo 12 d’O Capital, sobre divisão do trabalho e manufatura, para aprofundar os significados e avançar na compreensão das necessidades atuais do movimento comunista.
A divisão do trabalho no artesanato, na manufatura e na fábrica
Inicialmente, o que seria o trabalho artesanal? Um termo normalmente utilizado para referir-se ao trabalho amador ou malfeito. Na verdade, refere-se àquele realizado pelo artesão, ou seja, por um trabalhador que produz uma mercadoria e domina todo o seu processo de execução. Num exemplo prático, um militante “artesão”, ao encarregar-se de uma atividade política, realiza desde o seu processo de concepção, passando por sua organização e mobilização, até a realização em si da mesma. É como se um militante encarregado de uma eleição devesse escrever o programa, montar a chapa, diagramar os materiais, panfletar, fazer boca de urna, participar da apuração e estar na gestão, um passo após o outro, como um artesão que trabalha um sapato.
A superação do artesanato como base produtiva não se dá por conta da qualidade dos seus produtos. Pelo contrário, o artesanato centenário encontrado em comunidades tradicionais geralmente produz mercadoria de excelente qualidade, difícil de copiar mesmo com maquinário moderno. Essa superação se dá pela possibilidade de produzir mais mercadorias em menor espaço de tempo, de aumentar significativamente a produtividade do trabalho, isto é: dividindo o trabalho, podemos tanto aumentar a velocidade em que cada parte do trabalho é realizada como realizar todas elas ao mesmo tempo, em diferentes itens, acabando com todos os “poros” pelos quais escapava o tempo de trabalho.
O mesmo se dá no quesito político: um militante experimentado, com domínio do processo eleitoral, por exemplo, pode realizar esse processo com uma qualidade excelente, inclusive por ter em sua consciência as diferentes etapas e um domínio do processo como um todo. Contudo, será incapaz, pela própria característica do seu trabalho, de fazer diferentes eleições ao mesmo tempo, assim como de tornar-se especialmente habilidoso em uma etapa específica do processo político; está marcado para fazer de tudo um pouco, mas nada direito.
Em seguida, passamos ao trabalho manufatureiro, aquele onde já aparece a divisão do trabalho dentro de um processo produtivo, em que teremos diferentes trabalhadores executando diferentes etapas de uma produção. Esses trabalhadores serão então, pela repetição, cada vez mais especializados em sua tarefa parcial, desenvolvem ferramentas parciais para seu trabalho e tornam-se trabalhadores parciais. Transformam-se em um órgão de um sistema, uma parte de um processo produtivo, mas ainda uma parte diferenciada, especializada, incapaz de ser substituída imediatamente.
Essa evolução gera grandes frutos para o resultado final: com a especialização de um grupo de trabalhadores em cada etapa específica, podemos acelerar cada parcela do todo e aumentar a produção total do processo. Transcrevendo para a política, se enquanto um escreve o programa, outro monta a chapa e outro prepara o material, teremos uma aceleração do nosso trabalho, permitindo que cada parte seja executada com mais qualidade e em menor tempo. Mas, por outro lado, teremos militantes que conhecem menos do processo produtivo geral, que têm um domínio apenas parcial do processo.
Por fim, chegamos ao trabalho industrial, fabril, com máquinas, onde o trabalhador passa a condição de um simples apêndice do maquinário, subordinado a ele. Nisso, o trabalhador especializado é substituído pela máquina especializada, e a grande simplificação do trabalho torna também simples o trabalho do indivíduo, diminuindo enormemente o tempo de aprendizado do ofício. O trabalho, agora simples, pode ser executado por qualquer um, com mínima instrução. Torna-se o trabalhador, então, simples engrenagem no processo produtivo, facilmente substituível.
E aí interrompemos bruscamente nossa tentativa de transcrever o mundo produtivo para o trabalho político, com a seguinte questão: pode o processo político ser assumido por máquinas, e tornar-se o militante um apêndice da sua execução, um controlador?
A organização e a máquina
Para responder a essa questão, é preciso compreender o que está sendo considerado uma máquina na política. É lugar comum falarmos em “máquina eleitoral” para descrever uma organização ou partido que detém um grande acúmulo, material e organizativo, para realizar eleições. Essa “máquina” organizativa não é nada mais que 1) uma direção experimentada e bem formada, capaz de analisar e conduzir o processo, 2) o controle de meios de produção ou de capital suficiente e 3) uma base suficientemente larga para tocar tarefas genéricas.
Em termos mais usuais na esquerda revolucionária, poderíamos falar em 1) quadros, 2) aparelho1 e 3) militantes. Com isso, podemos dizer que sim, é possível transformar o processo político através da sua “mecanização”, na medida em que o mecânico não é feito de fios e aço, mas sim de sangue e tinta. É na medida em que a experiência acumulada e registrada (a tinta) é apropriada pela militância (o sangue), e continuamente alterada por esta, que podemos começar a falar de uma especialização do trabalho cada vez maior.
Começar a registrar, discutir e criticar as experiências talvez seja o mais difícil para iniciar essa especialização. Mas quanto mais atentamente analisarmos os processos políticos que já experimentamos, e fizermos a crítica apropriada dos mesmos, nos encontramos em um novo patamar para retomar essa tarefa futuramente. Nisso, os balanços, os relatórios e a produção de informes políticos são a pedra angular dessa construção, permitindo que tenhamos um registro fidedigno da situação a cada momento.
Em Carta a um Camarada, Lênin já colocava como tarefa dos comitês inferiores repassar o mais detalhadamente possível a situação política para os centros de decisão superiores, visando que aqueles que dirigem o Partido tenham maior compreensão do estado deste e da situação das coisas. Da mesma forma, para definir os rumos de nossa organização, o mapa político do país, em todos os locais que atuamos, é imprescindível.
Uma vez registrados, a apropriação dos acúmulos é o caminho da formação de quadros; é pelo estudo constante da situação concreta que pode desenvolver-se a direção consequente. De nada adianta a disciplina e o estudo teórico se não se soma o conhecimento da realidade de seu país, e da situação concreta em que se encontram as forças e classes em luta. Conhecer profundamente aquilo que dirige é o pressuposto fundamental do quadro dirigente.
Por outro lado, há também a tinta que deve ser gasta pelos quadros, a tinta que dita as orientações e dá o direcionamento político. A tinta que discute a política, delineia a nossa linha e retira disso os encaminhamentos necessários para a intervenção dos comunistas na luta de classes. Já que de nada adianta a direção conhecer profundamente a situação das escolas brasileiras e ser fundamentalmente incapaz de delinear uma tática para organizar os estudantes secundaristas, por exemplo.
E essa tinta também deve ser incorporada pelo sangue, mas o sangue que compõe nossas bases. Já que tampouco adianta uma base informar a direção da sua situação e condições e não se esforçar para aplicar a linha geral e específica da organização. Ao mesmo tempo em que são a fonte primordial das informações, as bases são também o destino final dos encaminhamentos e ações.
Respondendo à questão anteriormente levantada, se o engajamento militante não permite enxergar a militância como um mero “controlador” da organização, é sim possível, com uma divisão de tarefas e a correta compreensão das responsabilidades de cada instância, construir uma “máquina” organizativa. É uma questão de quadros e militantes, de acúmulo e renovação, de trabalho velho e novo.
E é nessa dialética de trabalho acumulado (tinta) e trabalho vivo (sangue) que se faz a “máquina” política. Sem precisar de aço ou fios, a organização pode e deve adquirir um funcionamento eficaz e automático. Nos fundamentos da Divisão Revolucionária do Trabalho, conjugam-se as instâncias e os militantes, compreendendo e transformando a realidade.
Notas
- A dificuldade do aparelho só pode ser resolvida mediante o desenvolvimento de finanças consequentes e com um investimento estratégico, calculando que o controle de meios de produção é mais útil do que puramente o gasto em materiais. Infelizmente, essa dificuldade demanda longo tempo de tratamento e foge do escopo deste texto. ↩︎