Por: Germano Monardi
Há algum tempo, escrevi para o site do PCB sobre a democratização da comunicação, abordando sobre algumas problemáticas não só na forma, mas no conteúdo da democratização da mídia. Relendo o texto, percebi na construção dele algumas tendências dogmáticas, que necessariamente vão ao encontro de uma negação da importante e necessária luta política, por mais contraditória e intransigente que ela seja às demandas da classe trabalhadora (quaisquer que sejam as esferas do trabalho oponentes do capital). Sigo, entretanto, nutrindo as críticas ao conteúdo da pauta da democratização da mídia, acreditando na sua importância, mas necessariamente reforçando que ela deve ser preenchida de caráter revolucionário.
Trago novamente esse assunto após reler uma matéria a respeito da ocupação de redações na imprensa Argentina. Entrevistada sobre o assunto, a cientista social Natalia Bauni afirmou que “longe de ter uma característica revolucionária ou de ataque ao sistema, o ponto central é que a maioria são trabalhadores assalariados mais velhos, para quem seria praticamente impossível reinserir-se no mercado de trabalho. A cooperativa foi apenas um modo legal de defender o trabalho”. Ora, a cientista social considera defender o trabalho contra as ofensivas do capital uma medida meramente reformista, ao que parece. Ou, ainda, pensaria que a característica central de um jornalismo revolucionário deveria ser necessariamente a denúncia ao modo de produção capitalista, uma vez que a produção jornalística subsumida aos interesses do capital seria necessariamente manipuladora e alienante.
Pois bem, eis-me aqui em uma polêmica interessante. Os teóricos funcionalistas da comunicação, vinculavam a construção da notícia jornalística e o ensinamento de como escrevê-la a uma ordem específica de distribuição das informações com base em um juízo de valor que atribuía a certos aspectos dos acontecimentos maior ou menor importância social. Por outro lado, os teóricos “marxistas” da Escola de Frankfurt absolutizavam a subsunção do jornalismo ao capital, afirmando que ele não poderia existir numa sociedade pós-capitalista. O jornalismo, no entanto, não é essa ferramenta de reprodução sistemática da ideologia do capital, ponto em que teóricos do funcionalismo e da Escola de Frankfurt parecem convergir. Ao contrário, o jornalismo, ainda que tenha sido parido, em sua atual forma, pela sociedade capitalista, guarda características que o extrapolam e que não devem ser subsumidas se quisermos fazer um debate sério a respeito do papel social que ele desempenha.
Na tentativa de passar para o mestrado, estudei o livro de Wilson Gomes e, de início, achei o livro bastante chato, heterodoxo e pouco servil à construção do meu pensamento enquanto jornalista comprometido com a causa comunista. Mas, como a segunda leitura é sempre muito mais esclarecedora – falando em termos de textos de difícil compreensão, como é o caso –, reli o livro, fichando-o, e achei contribuições importantíssimas para o assunto, mais precisamente no capítulo 2 de “Jornalismo, fatos e interesse”. Numa construção teórica complexa, Wilson Gomes constrói com maior refinamento a mesma crítica, opondo-se, por um lado, àqueles que absolutizam os fatos como independentes das interpretações sobre eles existentes e, por outro, colocando as contradições imanentes ao ato epistemológico (considero que a epistemologia, no ato de separar de forma logicista os objetos e sujeitos é por si só um equívoco ontológico) de relativizar os fatos, propondo que as suas verdades dependem das interpretações de cada sujeito, como se os indivíduos estivessem deslocados do processo histórico que os faz enxergar o mundo dessas ou daquelas formas. Sendo assim, até onde fora meu entendimento, Wilson Gomes situa os fatos ontologicamente, mesmo que defina esse ato como um realismo crítico – Duayer e Medeiros, entre outros autores, contribuem teoricamente para a relação entre realismo crítico e a ontologia do ser social em Lukács.
Segundo Wilson Gomes, “aquilo que a comunidade de sentido (que é determinada e determinante das relações sociais de produção e reprodução em cada período histórico) aceitou como entidade real, destacando do “fundo” contínuo natural, é ao mesmo tempo “naturalizado” para os indivíduos daquela comunidade”. Pois bem, sabemos a prática a costumeira da ideologia burguesa de naturalizar-se, visando estabelecer-se como valor universal e, portanto, valor último a ser reivindicado por todas as pessoas que vivem sob sua égide. Wilson continua afirmando que “o conhecimento atual é, portanto, sempre limitado a um contexto instituído de sentido que se caracteriza pela sua validade intersubjetiva que supera qualquer acordo voluntário, sendo na prática indiferente ao conhecimento pontual”.
Wilson situa que, se determinados fatos são vistos “in natura” (algo como o conhecimento geral de que a terra não é plana, o que faz dos sujeitos que assim o pensam arruaceiros intelectuais), outros são necessariamente vistos como cultura. Wilson afirma, em outros termos, que a apreensão da realidade garante numerosas interpretações que, no entanto, são mediadas por uma “história de sentido”, como ele chama, mas que não podem nunca dizer do fato aquilo que ele não é sem perder legitimidade – o exemplo das reivindicações de que a terra é plana volta aqui a se fazer relevante.
Sendo assim, retomo para dizer com palavras mais simples: o verdadeiro jornalismo não é necessariamente uma negação do atual modo de fazer jornalístico, opondo-se a ele diametralmente, como pressuponho que pense a cientista social ao afirmar que o caráter revolucionário das imprensas argentinas seja negado pelo fato de que os jornalistas que nelas trabalham continuam produzindo o mesmo formato de conteúdo em relação a quando essas empresas eram controladas por capitalistas individuais. O jornalismo, como o conhecemos hoje, nasce no bojo da sociedade burguesa como forma de conhecimento cristalizado no singular. Sendo assim, não deve ser pensado com o dever de fazer mais do que informar os sujeitos a respeito do mundo onde vivem com informações rápidas, ainda que isso possa ser feito (como provam ser possível autores do cacife de Gay Talese, Truman Capote, John Harvey e outros conhecimentos adeptos do jornalismo literário ou do new journalism). Cabe situarmos que a mídia não é central no processo de alienação. Ela é importante ferramenta ideológica da classe dominante, mas esta não pode prescindir do modo de produção em si, esperando que somente a ideologia a sustente como classe dominante, como defende Meszáros.
Encerro a primeira parte da minha polêmica (que parte de suposições a respeito do pensamento da cientista social, é verdade) afirmando, portanto, que o jornalismo, como forma de conhecimento cristalizada no singular apropriado pela burguesia, apresenta contradições potenciais autopromovidas pela própria dinâmica imanente ao modo de produção capitalista que devem ser utilizados pela vanguarda revolucionária como indicativos dessa contradição e que, do contrário, serão sim utilizadas como fortalecimento da alienação e da ideologia dominante. Digo mais, sustento que o trabalho jornalístico não se encerrará na sociedade socialista, que as empresas de comunicação devem ser expropriadas e postas sob o controle dos trabalhadores e trabalhadoras do jornalismo livremente associados, servindo como informativo às trabalhadoras e trabalhadores livremente associados das condições das mais diversas instâncias da vida em sociedade.
Disso, então, parto para a segunda polêmica: a afirmação de que, em função de ser somente “em defesa do trabalho” (posto por ela de forma abstrata, mas que apresenta dimensão concreta na vida das trabalhadoras e trabalhadores), como se isso fizesse da ocupação da imprensa algo menos revolucionário. A autora mesma afirma durante a entrevista que, não fossem as condições impostas pelas cooperativas, garantidoras de trabalho para sujeitos que, de outro modo, não o teriam, estes estariam desempregados. Partindo de outra suposição, devo imaginar que a cientista social deve pensar que o desemprego é algo externo ao modo de produção capitalista, e não sintoma necessariamente demonstrativo da doença que é viver nesse “sistema”, dado que ele nega trabalho para uma infinidade de seres humanos a fim de garantir maior exploração do trabalho vivo devidamente empregado. A autora se contradiz ao negar o caráter revolucionário de uma ação revolucionária em si mesma, por se colocar em favor do trabalho, força historicamente oposta ao capital.
A negação do caráter revolucionário, que só se concretiza uma vez que assim se afirma diante da sociedade não contribui em nada. Os cooperados podem não considerar tal ato (o da ocupação da imprensa) como revolucionário, o que pode demonstrar falta de consciência política, tática de mediação perante a sociedade. Fato é que um sindicato reformista jamais se colocaria favorável a tal ato sem ser atropelado pelo movimento espontâneo dos trabalhadores ou sem antes tentar fazer mediações entre os capitalistas e trabalhadores por eles empregados.
“Hoje temos quase dois mil sócios, e além deles, cerca de 2.500 assinantes do jornal”, disse Borelli, para quem nos últimos dois anos “despertou mais forte na Argentina a lógica de que os leitores também se sentem responsáveis por financiar um meio de comunicação e entender que a produção jornalística é algo caro, e que vale a pena contribuir para produzir informação necessária”, disse Javier Borelli, jornalista e presidente da Cooperativa Por Más Tiempo. Nos marcos da sociedade capitalista, portanto, fazer jornalismo é caro, mas as pessoas se responsabilizam financeiramente pela produção da “informação necessária”. Borelli deixa evidente, aqui, a clara visão que o jornal constrói com o próprio público de subsunção do valor ao valor de uso da mercadoria jornalística produzida pela cooperativa, porque a produção da notícia na cooperativa se tornara mais importante do que o âmbito lucrativo dessa profissão, ainda que nos marcos da sociedade capitalista (dado que a cooperativa se insere nesses marcos) isso seja necessário para a manutenção da cooperativa. A polêmica aqui está relacionada à visão da cientista social de que tal ato não é revolucionário, o que demonstra da parte dela uma visão fenomênica da ação política dos jornalistas associados na cooperativa.
Caso caiba aqui um parágrafo de mediação com o resto do texto, gostaria de reforçar que não nutro falsas ilusões com as cooperativas. Nos marcos do capital monopolista, as cooperativas no Brasil, salvo exceção (como os casos das cooperativas do MST) servem como ferramenta de superexploração dos trabalhadores que, cooperados, servem como mão de obra terceirizada às grandes empresas que adotam uma produção cada vez mais voltada a gestão do trabalho vivo de maneira predatória, sendo que uma porcentagem ínfima delas – no Brasil – são, como as cooperativas de imprensa citadas, resultado de ocupação de trabalhadores que ficaram desempregados com a falência das fábricas sob propriedade de capitalistas. Continuemos.
Durante o meu TCC, que conclui em 2017 (tendo me formado em 2018 e sendo hoje mais um jornalista desempregado que, como eu já disse, tenta passar no mestrado), pude contar com a sorte de, ao redigir sobre concentração monopólica dos meios de comunicação, me deparar com o estudo Media Ownership Monitor (Observatório dos detentores da mídia) e os dados no caso brasileiro são alarmantes. A burguesia detentora dos meios de comunicação burla a constituição de maneira descarada, o que evidencia não que o Estado não funciona como deveria, mas que sob o domínio da classe burguesa funciona exatamente como deveria, servindo aos interesses dos capitalistas organizadas como classe dominante detentora do poder político. O que mais me incomoda no debate sobre a democratização da mídia e que é hegemônico nessa discussão é justamente estabelecer o Estado como marco civilizatório da sociedade democrática, como se esse formato de sociedade não devesse passar pelo crivo da análise econômica antes que possa se afirmar como tal. Ora, se vamos falar de democratização, que paremos de falar somente sobre a possibilidade de consumir mais de uma possibilidade de perspectiva jornalística, como se a informação necessária e naturalmente tivesse de estar atravessada pela ideologia – volto a reivindicar a função social do jornalismo; que paremos de reivindicar o retorno ao capital concorrencial; que situemos a mídia sob os marcos do capital monopólico; que coloquemos os detentores dos meios de comunicação como burgueses que, sob uma revolução socialista, necessariamente terão seus modos de produção expropriados. Disso, partiremos para a compreensão de que a democratização da comunicação passa necessariamente por ocuparmos as fábricas (também as de notícias), fazermo-nos jornalistas livremente associados comprometidos com a informação a serviço do avanço da sociedade socialista (capazes de expor os erros acontecidos para a sociedade de transição com a plena compreensão de que o socialismo não existirá sem profundas contradições). Daí, independentemente das nossas vontades, o ato de ocupar será revolucionário, porque será necessariamente a negação de tudo aquilo que nos oprime não só como categoria, mas como classe.