Home Opinião Constituição Federal, 37 anos: um novo Brasil, ou será o mesmo?
Constituição Federal, 37 anos: um novo Brasil, ou será o mesmo?

Constituição Federal, 37 anos: um novo Brasil, ou será o mesmo?

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Dia cinco de outubro de 1988, dez minutos pras quatro horas da tarde, é oficialmente promulgada a nova Constituição Federal, o prego no caixão da ditadura cívico-empresarial-militar e o marco da volta inevitável da democracia – ou é o que se pensava. Nas mãos de Ulysses Guimarães, o texto representava a norma mais democrática e participativa da história do país, elaborada por uma assembleia constituinte em que a classe sindical, os povos indígenas e movimentos sociais puderam expressar suas requisições e lutar pela defesa de seus direitos, antes suprimidos violentamente em todas as esferas da sociedade por meio do terror militar.

Nós marxistas, no entanto, sabemos que a prática é o critério da verdade. E é por isso que, nesse aniversário de 37 anos da Constituição Cidadã, é preciso que nos perguntemos sobre as bases materiais da formação desse texto e da sua aplicação na sociedade brasileira, a fim de conectar a norma fundamental do país aos avanços e retrocessos que o povo obteve nessas quase quatro décadas, especialmente frente às tentativas de golpe e restauração da ditadura que enfrentamos no passado recente.

A partir daí, aparece a pergunta: a Constituição de 1988 foi, realmente, o prego no caixão da ditadura? Para responder isso, olharemos à trajetória da democracia brasileira desde a época. A constituinte não foi convocada pela vontade própria dos generais de sair do poder – foi um processo de luta incessante, marcado pelas Diretas Já, pelo novo sindicalismo, por jornadas históricas dos povos indígenas e dos movimentos sociais, que por 21 anos haviam sido continuamente massacrados. Foi o resultado de uma disputa política e social acirradíssima, repleta de violência, resistência e autoritarismo, como é a norma na queda de regimes fascistas. A diferença do caso brasileiro, contudo, é de que nenhum desses fascistas foi punido, nem suas instituições enfraquecidas. A Constituição, nesse sentido, apesar de sua força, é apenas um dos acontecimentos que marcaram a agenda conciliatória que encerrou a ditadura militar no Brasil, mas manteve quase intactas suas bases.

Existe uma impressão no imaginário popular de que, imediatamente após o fim da ditadura, seus apoiadores desapareceram. Muito pelo contrário – se esconderam, realocaram, mas permaneceram no controle de estruturas do estado e da economia. O primeiro presidente da redemocratização brasileira, por exemplo, é um deles. José Sarney, legítimo “filhote da ditadura”, marcou um processo de redemocratização no discurso e aprofundamento das desigualdades na prática, se aproveitando da destruição causada pelos militares para ratificar o domínio da burguesia sobre esse novo Brasil – a mesma burguesia que sustentou os 21 anos de terror. E esse projeto permaneceu, com suas peculiaridades, nos governos Collor, Itamar e FHC. Foi dessa forma que o país saiu de um regime fascista para um regime neoliberal de exploração e degradação da classe trabalhadora. As torturas e assassinatos agora eram conduzidos pela Polícia Militar nas periferias, a censura expressa na concentração do capital midiático e o massacre dos povos originários e tradicionais delegados aos grandes fazendeiros, grileiros e mineradores. A forma mudou, mas a estrutura se manteve.

Manteve-se também a estrutura do Exército Brasileiro. Com a anistia concedida aos assassinos e torturadores, acompanhada da inexistência de reformas profundas e necessárias, os mesmos generais que articularam o golpe e os anos de repressão permaneceram na condução das Forças Armadas, mesmo que não ocupassem cargos no governo. A social-democracia de Lula e Dilma, embora tenha sido marcada por grandes conquistas do proletariado e das camadas populares, também não foi capaz de desmontar esse modelo de país. Ora, um modelo de colaboração com a burguesia, leniência com o exército e apoio ao agronegócio não poderia ocorrer de outra forma. Até que essa mesma burguesia conduziu o golpe de Temer e tomou conta, efetivamente, do estado brasileiro.

A parceria exército-burguesia que articulou o o golpe cívico-empresarial-militar volta, então, com força total a partir da ascensão de Bolsonaro ao poder. A retomada da retórica fascista, a condução das contrarreformas que destruíram as garantias obtidas pela luta dos trabalhadores e o aprofundamento do neoliberalismo no país resultaram, por fim, na tentativa de golpe de estado e assassinato do Presidente eleito, em uma espécie de retorno ao passado nefasto. Membros do alto escalão do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, apoiados por setores conservadores da população e sustentados pela burguesia autoritária participaram de um plano obscuro que, por pouco, não acaba novamente em desgraça para o povo. Bom, hoje, boa parte desses inimigos da classe trabalhadora estão condenados e aguardando prisão. Mas o que falta nessa história?

Novamente, à despeito da condenação dos responsáveis pela tentativa de golpe, o Exército Brasileiro saiu ileso. Em que pese a Constituição Federal tenha sido o escudo legal de proteção do Estado, eficientemente instrumentalizada na contrarreação democrática e no julgamento dos golpistas, não houve processo algum de aprofundamento dos seus ideais na estrutura das Forças Armadas. Para isentar todo o Exército de culpa, bastou à justiça o “não” do Comandante da Força a Bolsonaro. Teria sido um “não” à ditadura ou um “não” aos incompetentes perpetradores do golpe? O Supremo Tribunal Federal escolheu não procurar respostas a essa pergunta e, em uma manobra política, excluiu a responsabilidade institucional do Exército do julgamento, satisfeito com a responsabilização individual dos golpistas.

A partir dessa análise, percebe-se que, durante os 37 anos da Constituição Cidadã, seus mandamentos e determinações em momento algum foram inseridos no contexto do Exército, que não passou por reformas estruturais nesse processo e permanece o mesmo desde 1988. Para confirmar essa constatação, basta enumerar a quantidade assustadora de membros do alto-escalão que participaram na tentativa de golpe, apoiaram a eleição de Bolsonaro e constituíram seu governo em diversas áreas, chegando a ocupar vários ministérios e direções de empresas estatais. A prática é o critério da verdade, e, nesse caso, nos mostra que o golpismo nunca esteve morto, que os anseios fascistas dos generais permaneceram e que a organização da classe trabalhadora, mesmo tendo ao seu lado uma norma fundamental democrática e empoderadora, ainda não é madura o suficiente para frear movimentos autoritários de tomada do poder.

Nesse sentido, se lutamos pelo fim da burguesia, devemos lutar pela reforma do exército, de modo que esse se transforme em um defensor efetivo das camadas populares, subserviente a seu comando. A Constituição Federal, sozinha, não tem força pra lutar contra os fuzis e as pilhas de dinheiro. É necessário resgatá-la como instrumento do povo para sua libertação e para a criação do Poder Popular. Não pode ser mantida como um acessório às disputas políticas no país, mas precisa ser elevada ao seu potencial completo. Assim, e somente assim, poderá se afirmar que a Constituição Cidadã fechou o caixão da ditadura no Brasil, abrindo caminho para um amanhã de igualdade, dignidade e participação popular.

Por Samuel Leão Marrara, militante da UJC no Distrito Federal – Núcleo UnB

Foto: Orlando Brito