CHIPRE: MAIS UM POVO DIVIDIDO PELO IMPERIALISMO*
O Chipre é uma pequena ilha no Mar Mediterrâneo, pouco maior que o Distrito Federal, ao sul da Turquia e a apenas duzentos quilômetros do litoral Sírio. Atualmente, a ilha está dividida em duas partes: ao sul, a legítima República do Chipre, de maioria étnica grega, cuja religião oficial é o cristianismo ortodoxo; ao norte, a região ocupada pelo exército turco desde 1974, transformada em um Estado-fantoche denominado República Turca do Norte do Chipre, sem qualquer reconhecimento por parte da comunidade internacional, povoada majoritariamente por turco-cipriotas muçulmanos.
A Ilha, historicamente, é um local de grande importância no Mar Mediterrâneo, sendo considerada como uma porta para o Oriente Médio, com posição geográfica favorecida pela proximidade com a região do Levante, que se estende desde o sul da Turquia – passando pela Síria, Líbano e Palestina -, até a Península do Sinai no Egito. Durante o século dezenove, com a construção do Canal de Suez, que liga o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo, o Chipre se torna ainda mais importante na geopolítica mundial.
Em função da sua posição estratégica, a ilha do Chipre foi ocupada inúmeras vezes, principalmente pelos bizantinos e, posteriormente, pelos otomanos. Ao final do século dezenove, após quase trezentos anos de ocupação turca-otomana, o Chipre foi colocado sob administração britânica, sendo anexado oficialmente ao Império Britânico no início do século XX, tornando-se um entreposto marítimo crucial para navios ingleses vindos da Ásia através do Canal de Suez. Como resquício da ocupação otomana, quase 20% da população cipriota na metade do século XX era composta por turcos étnicos, os turco-cipriotas, ao passo que os 80% restantes eram compostos majoritariamente por gregos étnicos, os greco-cipriotas, que coexistiam pacificamente.
Durante os anos 50 o Chipre foi sacudido por agitações pró-independentistas em relação ao Império Britânico. Para enfraquecer o movimento de independência, os ocupantes ingleses passaram a estimular a violência étnica entre os cipriotas gregos e turcos. Enquanto isso, Grécia e Turquia já endureciam a retórica em relação ao Chipre com o pretexto de defender suas respectivas populações. Em 1960, a partir de um acordo entre o Reino Unido, Turquia e Grécia, a ilha se torna independente em relação à Inglaterra. Nasce, assim, a República do Chipre, já desmembrada desde a sua criação: duas bases militares britânicas, Akrotiri e Dhekelia, ocupam o território cipriota e abrigam quase dez mil soldados da rainha em toda a ilha até hoje.
Em 1974, quatorze anos após a independência do Chipre, um golpe de estado executado por paramilitares cipriotas-gregos, anticomunistas ferrenhos e favoráveis à anexação da ilha à Grécia, derruba o presidente. Durante o golpe, o papel da Junta Militar fascista que governava a Grécia desde 1967 foi essencial, tanto em termos logísticos quanto diplomáticos. Com o objetivo de aplicar seus planos expansionistas e sob o pretexto de defender a minoria turca de possível violência étnica, menos de uma semana depois do golpe de estado bem-sucedido, dezenas de milhares de soldados turcos invadem o Chipre e dividem a ilha ao meio: ao norte, a porção ocupada pela Turquia, ao sul a República do Chipre. Durante o conflito, quase duzentos mil greco-cipriotas do norte da ilha foram expulsos de suas casas e se tornaram refugiados no sul. Desde então, para ocupar o vácuo deixado por essa massa de refugiados, o governo turco tem colonizado os territórios ocupados, trazendo colonos do interior da Turquia para ocupar as casas e propriedades pertencentes aos greco-cipriotas expulsos. São os espólios da guerra.
As consequências da divisão da ilha são sentidas até hoje, principalmente em Nicósia, capital ao mesmo tempo da República do Chipre e da ilegítima República Turca do Norte do Chipre. De modo a separar as duas populações e dificultar ainda mais o processo de integração e unificação, ainda na década de 60, anos antes da invasão turca, um muro foi erguido pelos britânicos cortando a cidade ao meio, separando uma população da outra. Após 1974, com a ocupação do norte da ilha pelos turcos, o muro se tornou intransponível de um lado para o outro, sendo controlado por uma “força de paz” da ONU. Desde então, caminhar pelas ruas estreitas de Nicósia é uma tarefa que requer cuidado: é extremamente comum dobrar uma esquina e deparar-se com um checkpoint cheio de soldados fortemente armados e desconfiados. Os prédios cravejados de balas no centro da cidade desde 1974 também não contribuem para aplacar a tensão, o que faz com que o centro de Nicósia, parcialmente destruído pela guerra durante a invasão turca, em muito se assemelhe à periferia de Sarajevo, na Bósnia, ainda não reconstruída desde a sua destruição durante a década de 90.
Nesse contexto, a hipocrisia imperialista torna-se ainda mais palpável. Durante a Guerra Fria, ao mesmo tempo em que o bloco capitalista criticava a divisão de Berlim, algo cruel era arquitetado no Chipre. O Império Britânico, potência colonial que nunca se importou com qualquer sorte de violência étnica entre seus “súditos”, principalmente se esta ocorresse em países do terceiro mundo, especialmente na África, divide duas populações que coexistiam de forma pacífica. Com a invasão turca, cerca de 37% da ilha torna-se oficialmente controlada pela República Turca do Norte do Chipre, estado-fantoche da Turquia na ilha, ao passo que o sul permanece soberano até hoje através da República do Chipre.
A questão do Chipre nasceu, portanto, a partir de uma disputa entre Grécia e Turquia alimentada pela própria OTAN, e não de uma disputa entre os gregos e turco-cipriotas, que historicamente coexistiam em relativa harmonia. Nesse contexto, o papel do imperialismo foi essencial na gênese do conflito: usando a máxima ‘dividir para conquistar’, ao estimular por décadas a violência étnica entre os cipriotas e dividir a ilha entre a Grécia – a anexação do Chipre ao país helênico era o objetivo final dos golpistas greco-cipriotas em 1974 -, e Turquia, o Chipre naturalmente torna-se parte do território da OTAN, já que ambos os países integram a aliança. Portanto, desmembrar o Chipre em duas partes tinha como objetivo fortalecer o flanco sudeste da OTAN ao transformar a ilha em uma grande base militar, comportando mísseis e aviões que conseguem em questão de minutos atingir qualquer ponto do Oriente Médio e Norte da África, de Beirute a Teerã ou de Damasco ao Cairo, o que torna a ilha um local estratégico no tabuleiro geopolítico do século XXI.
Com a consciência de que a divisão do Chipre é uma consequência direta das políticas imperialistas adotadas pelos líderes da OTAN durante a Guerra Fria em consonância com os interesses expansionistas tanto da Grécia quanto da Turquia, quase quinze organizações progressistas de Juventude da Europa, Ásia, Norte da África, Oriente Médio e da América Latina reuniram-se no mês passado em Nicósia, República do Chipre, no 29º Festival Pancipriota da Juventude e dos Estudantes, organizado pelos camaradas da EDON (Organização Unida da Juventude Democrática), sob a insígnia “O papel da OTAN e da União Europeia na questão dos refugiados”.
Durante o Festival, imperou a fraternidade militante entre as organizações, principalmente entre aquelas provenientes dos países diretamente envolvidos no conflito, e a certeza de que somente através do socialismo é possível diluir as tensões étnicas na região. Além disso, através de seminários, debates e conferências, foi um espaço de uma importante troca de experiências entre jovens de diversos lugares do mundo, o que seguramente contribuirá para o fortalecimento internacional da luta contra o imperialismo.
Em Nicósia, a UJC reafirmou seu compromisso internacionalista e a solidariedade com o povo cipriota na sua luta por um Estado bi-comunal na ilha, unindo greco e turco-cipriotas, com justiça social, fora da zona do euro e sem bases militares da OTAN.