Home Opinião Atravessando as cortinas de fumaça: razões e mediações para não esquivar do debate sobre “a família, a moral e os bons costumes” em tempos de fascistização
Atravessando as cortinas de fumaça: razões e mediações para não esquivar do debate sobre “a família, a moral e os bons costumes” em tempos de fascistização
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Atravessando as cortinas de fumaça: razões e mediações para não esquivar do debate sobre “a família, a moral e os bons costumes” em tempos de fascistização

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Por Gaia Kalashnikov, militante da UJC-Brasil

Houve uma crescente aderência de grande parcela dos brasileiros às concepções éticas e morais de Bolsonaro e seus apoiadores, pautadas geralmente pelo medo da violência urbana e da “destruição da família” e também do ódio à corrupção. Curiosamente, as respostas dadas a essas questões sociais são saídas que perpassam desde o punitivismo do justiceiro individual (linchamentos, aumento do armamento) [1] ao culto à repressão pública. Sobre a violência e utilização da mesma para “correção” humana e o debate da corrupção vemos novas e grandes formulações com perspectivas de diferentes soluções para antigos problemas. Me atenho, aqui, a comentar especificamente a questão da moralidade sobre o que tange a família e, por consequente, as relações sociais de sexo (e os demais estranhamentos por conta dessas gerados).

É importante afirmar que em nível de aparência a concepção familiar defendida por Bolsonaro e seguidores está baseada num discurso frequente do desejo que girar a roda da história para trás (mas apenas em algumas questões, lembrem-se!) em busca de “gloriosos tempos perdidos”. Esse modelo familiar, na essência, de “papai trabalha fora” e “mamãe fica em casa” [2] – sob justificativa de amor, já que sua atividade de trabalho doméstico não é reconhecida enquanto tal- está ameaçado não por influência dos “degenerados” comunistas e demais falácias absurdas criadas e difundidas principalmente através de mídias (televisão, redes sociais…) [3], mas sim pelas frequentes mudanças no modo de produzir (e, consequentemente, de reproduzir) a vida na sociedade. A transformação massiva das mulheres em trabalhadoras assalariadas, em busca de salários – pois não mais bastavam os salários dos homens- , fez com que elas tivessem cada vez menos tempo para o trabalho doméstico ou reprodutivo (o que não significa que deixaram de fazê-lo).

“Segundo cálculos de antes da Grande Guerra, nos países da Europa e América, chegava a sessenta milhões o número de mulheres que ganhavam a vida com seu trabalho. Durante a guerra esse número aumentou consideravelmente. A imensa maioria dessas mulheres estavam casadas; fácil é imaginarmos a vida familiar que podiam desfrutar. Que vida familiar pode existir onde a esposa e mãe está fora de casa durante oito horas diárias, dez, melhor dizendo (contando a viagem de ia e volta)? A casa fica, necessariamente, descuidada; os filhos crescem sem nenhum cuidado maternal, abandonados a si mesmos em meio aos perigos da rua, na qual passam a maior parte do tempo. A mulher casada, a mãe que é operária, sua sangue para cumprir com três tarefas que pesam ao mesmo tempo sobre ela: dispor das horas necessárias para o trabalho, o mesmo que faz seu marido, em alguma indústria ou estabelecimento comercial; dedicar-se depois, da melhor forma possível, aos afazeres domésticos e, por último, cuidar de seus filhos. O capitalismo carregou para sobre os ombros da mulher trabalhadora um peso que a esmaga; a converteu em operária, sem aliviá-la de seus cuidados de dona de casa e mãe. Portanto, a mulher se esgota como consequência dessa tripla e insuportável carga que com frequência expressa com gritos de dor e lágrimas.” (KOLLONTAI, Alexandra)

Alterações na estrutura produtiva societária modificam as relações sociais de produção na sua totalidade, seja na esfera do trabalho assalariado ou das relações e modelos familiares. Isso dá-se por haver uma união indissociável entre esfera da produção e da reprodução da vida. A forma de família, os costumes e a moral são mutáveis historicamente e de tal forma devem ser concebidas. Há muito tempo, por exemplo, a família era “genésica” (ou matrilinear), onde uma mãe-anciã era quem centralizava os familiares em torno de vida e trabalho comuns. Mesmo hoje dois países capitalistas tem diferenças nas estruturas e morais que tangem a família.

No capitalismo tudo que se produzia em casa agora é produzido nas fábricas e pode ser comprado. Não temos mais tempo para exercer as tarefas domésticas que antes eram complexas e desempenhadas por nós mulheres, como produção de lãs, couros e telas (e demais produtos com extremo valor de uso, devido a isso a necessidade de ser “mulher prendada”) para que fosse vendido o excedente. Hoje o trabalho doméstico e reprodutivo está voltado para a limpeza, organização, planejamento, cozinhar, cuidar de crianças e idosos. Esse trabalho (esgotante) está cada vez mais individualizado e a família relegada ao privado. As perspectivas de fragmentação da classe trabalhadora e o assim entendimento de si e do mundo, isola-nos cada vez mais. O Estado e a vida no geral tinham muito mais dependência dos feitos domésticos do que tem hoje. O marido mantinha a esposa e seus filhos (que eram educados pelos pais). Hoje o trabalho assalariado permite novas configurações familiares (ou de negação a elas) em que não necessariamente um membro dependa do outro no quesito financeiro, mesmo que para isso tenha que se submeter a empregos de péssima remuneração. É o que vemos acontecendo frequentemente com as LGBT’s, por exemplo. Quem não conhece a história de alguma LGBT que foi expulsa de casa e desde cedo teve que se virar da forma que fosse em defesa de ser quem é ou de seus relacionamentos? [4] Grande parte só pode romper com o núcleo familiar inicial por poder vender sua força de trabalho.

Através desse pano de fundo sobre as atualidades e possibilidades de mudança da família e da moral podemos voltar para os argumentos do governo Bolsonaro sobre padrões do “ser homem” e ‘’ser mulher’’, que com certeza estão vinculados à divisão sexual do trabalho. Não seria, talvez, essa tal defesa da família e seus papéis uma justificativa para a naturalização do desemprego crescente entre as mulheres (15% de mulheres desempregadas enquanto existem 11,6% de homens desempregados [5])? Mulheres que, por sua vez – em sua maioria negras e/ou imigrantes/migrantes – , acabam trabalhando como domésticas ou em outros trabalhos extenuantes, sendo, também, uma legitimação do crescente trabalho informal, sem direitos e mal pago feito pelas mulheres? (Bolsonaro votou contra a PEC das domésticas [6]). O fato é que a atual faceta do Estado tem como marca registrada a união dos ultraliberais com os conservadores (nas palavras de Paulo Guedes) que, como uma mistura caricata, através de um discurso forte, privatizam serviços básicos e também a própria família. A família isolada do capitalismo atual faz com que terceirizemos a educação (e por vezes muitos outros cuidados) dos filhos somente, ou seja, é algo formatado para que quase nunca envolva os pais e os pequenos no processo de decisão e deliberação sobre a educação, cuidado, alimentação dos filhos. Tais coisas são vistas como mercadoria pelo capitalismo e seu Estado, e não como uma responsabilidade deste último (justamente por sua constituição e posição de classe atual) em educar, alimentar e cuidar das novas gerações. Há, portanto, uma suposta desresponsabilização do Estado e responsabilização do setor privado (terceirizadas de limpeza e cozinha, agências para babás e diaristas). Um exemplo da desresponsabilização através da terceirização é o crime ambiental em Brumadinho – MG. A Vale foi privatizada e, atualmente, usa diversos serviços terceirizados onde, nesse caso, serão as terceirizadoras as responsáveis por alguns trabalhadores atingidos pelo rompimento de barragem. Nesse aspecto é que tentam nos enganar pois essa dicotomia de público e privado separados é irreal. Sabemos bem da caracterização de classe do Estado e pra quem governam.

Portanto, é necessário desmistificarmos os debates sobre a moral e a família, apresentando sempre nossas históricas ideias e propostas de transformação desses campos da vida. Infelizmente diversas parcelas dos setores críticos à Bolsonaro estão presos na pequena política e na falta de mediação para abordar esses temas, preferindo o deboche e o choque ao invés da mediação e construção coletiva. Isso porque, sem dúvidas, foge ao alcance desses setores a perspectiva de que temos um trabalho sério em frente no que tange a disputa das mentes e coração do trabalhadores. Queremos creches, lavanderias, restaurantes, e casas de maternagem públicas (e qualificadas) para que homens e mulheres tenham tempo de trabalhar para si e para o desenvolvimento da humanidade. Queremos decidir sobre a educação e alimentação das novas gerações e do mundo! E, também, para que a família tenha como únicas bases as uniões de afetos e camaradagens e não mais a dependência sofrida pela mulher e os filhos. Para que a infância seja respeitada verdadeiramente e orientada em todos os aspectos da vida, sem medos e pudores anticientíficos, inclusive sobre educação sexual e corpo, para que nenhuma criança sofra as condenações físicas e psicológicas do abuso sexual sem instrução para defender-se. Para que a juventude exista em sua plenitude para todos, inclusive para a juventude negra e periférica, vítima de um verdadeiro genocídio. Defendemos novos valores que guiem as relações humanas, o novo homem e a nova mulher, um novo modelo de família [7].

“Portanto, a Sociedade Comunista se aproximará do homem e da mulher proletários para dizer-lhes:”Sois jovens e se amam”. Todos têm o direito à felicidade. Por isso devem viver vossa vida. Não tenham medo do matrimônio, já não é mais uma cadeia para o homem e a mulher da classe trabalhadora. E, sobretudo, não tenham medo, sendo jovens e saudáveis, de dar a vosso país novos operários, novos cidadãos. A sociedade dos trabalhadores necessita de novas forças de trabalho; saúda a chegada de cada recém nascido ao mundo. Tão pouco temam pelo futuro de vosso filho; ele não conhecerá a fome nem o frio. Não será desgraçado, nem ficará abandonado a sua sorte como acontecia na sociedade capitalista. Tão pronto ele chegue ao mundo, o Estado dos trabalhadores, a Sociedade Comunista, assegurará ao filho e à mãe alimentação e cuidados solícitos. A pátria comunista alimentará, criará e educará o filho. Porém essa pátria não tentará, de modo algum, arrancar o filho dos pais que queiram participar na educação de seus pequenos. A Sociedade Comunista tomará como todas as obrigações da educação do filho, porém nunca despojará das alegrias paternais, das satisfações maternais a aqueles que sejam capazes de apreciar e compreender essas alegrias. Se pode, portanto, chamar isso de destruição da família por violência ou separação a força da mãe e o filho?” (KOLLONTAI, Alexandra)

É verdade que alguns de nós preferem desviar o foco desse debate (do qual chamam “cortina de fumaça”) pra evitar maiores tensões e focar, de maneira tática, em questões mais “econômicas ou políticas”’. Só seria necessário fazê-lo caso ainda não tivéssemos nenhum acúmulo sobre e se fosse impossível romper com essa versão de moral individualista e sem consciência de classe do neoliberalismo. Entretanto, esse não é o caso. Usam dos sentimentos alheios e suas crenças para atiçar tais convicções retrógradas, é verdade, sendo essas pautas mais usadas para polêmicas. Todavia não podemos ignorar o fato de que a classe trabalhadora brasileira está em disputa e atenta inclusive sobre o debate da moral, e é nosso dever apresentar a superação desses valores e da família individual pela perspectiva da “família universal dos trabalhadores”. Não devemos nem mesmo fechar os olhos para aqueles que dentro das comunidades religiosas fazem essa disputa. Temos conosco a defesa de valores universais como solidariedade, camaradagem, ajuda mútua e dedicação à vida coletiva. Por uma família baseada no bom convívio camarada e na aceitação de todos. Nem mesmo tais características humanas e organizações da vida social devem parecer impossíveis de serem transformadas. Ao menos, é o que tem mostrado a história até aqui.

Referências

[1] Por que os Marxistas se Opõem ao Terrorismo Individual. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1911/11/terrorismo.htm

[2] Cotada para ministra diz que ‘mulher nasce para ser mãe’ e ‘infelizmente tem que ir para o mercado de trabalho’. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/cotada-para-ministra-diz-que-mulher-nasce-para-ser-mae-infelizmente-tem-que-ir-para-mercado-de-trabalho-23272762

[3] A estratégia pseudo-religiosa que serve a Bolsonaro. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/21190/a-estrategia-pseudo-religiosa-que-serve-a-bolsonaro/

[4] O capitalismo e a identidade gay. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/lucas-vosch/o-capitalismo-e-a-identidade-gay-john-demilio/995793563766279/

[5] Taxa de desemprego entre mulheres é de 15%, bem acima dos 11,6% dos homens, aponta Ipea. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2018/06/taxa-de-desemprego-entre-mulheres-e-de-15-bem-acima-dos-116-dos-homens-aponta-ipea.html

[6] Bolsonaro explica seu voto contra a ‘PEC das Domésticas’. Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/bolsonaro-explica-seu-voto-contra-pec-das-domesticas/

[7] O comunismo e a família. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/17192/o-comunismo-e-a-familia/