Por Marcela Pereira Rosa, militante do PCB de São Paulo.
“Não aguento mais a depressão. Socorro”. Escreveu com corretivo branco nas portas do banheiro feminino a mulher que não aguenta mais a depressão e marcou suas dores nas cores cinzas da universidade, pedindo socorro. Em outro prédio da mesma universidade, outros escritos gritam: “Eu me sinto burra demais aqui”.
A questão do adoecimento psíquico na pós-graduação vem sendo tema corrente de discussões no espaço universitário. As notícias de suicídio no ambiente acadêmico trouxeram à tona relatos sobre a difícil realidade vivenciada pelos pesquisadores brasileiros no interior das instituições de ensino superior. Os dados sobre o estado de saúde mental de pós-graduandos, embora ainda insuficientes, já apontam para um cenário alarmante. Em uma pesquisa[1] realizada com estudantes de pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB), 90% dos participantes afirmaram sofrer de ansiedade. Outros sintomas frequentes foram desânimo (72%), irritabilidade (63%) e isolamento social (39%). Recentemente uma matéria[2] publicada pelo El País sob o título “O doutorado é prejudicial à saúde”, apontava que na Bélgica, em um estudo realizado com 3.659 doutorandos, 41% dos participantes se sentiam sob pressão constante, 30% deprimidos ou infelizes e 16% sentiam-se inúteis. Nos Estados Unidos, 39% dos doutorandos sofrem de depressão moderada ou severa, em comparação com 6% da população geral.
Como vemos, não é por acaso que o adoecimento psíquico tem entrado em pauta quando o assunto é a pós-graduação. O cotidiano na pós é hoje, mais do que nunca, marcado pelo crescente produtivismo acadêmico. O incentivo à produção massificada coloca o conhecimento sob a ordem dos critérios quantitativos e relega a qualidade das pesquisas a um segundo plano – quando não a anula por completo –, configurando um profundo esvaziamento do caráter crítico dos estudos. A pressão por produção e publicação é regra; a meritocracia impera e acirra a competição entre os pares. É preciso citar também a precarização das condições de trabalho dos pesquisadores, que incluem o baixo valor das bolsas, cortes de financiamento, falta de material e equipamentos e a insuficiência ou mesmo a inexistência de políticas de permanência estudantil, como acesso à moradia, alimentação de qualidade e transporte gratuito, apenas para citar alguns aspectos. Na condição de pós-graduando o pesquisador não é visto formalmente como um trabalhador e não dispõe de direitos trabalhistas básicos. Há uma profunda cobrança em relação aquilo que se deve cumprir sem nenhuma contrapartida, como remuneração justa e reajuste anual do valor das bolsas – vale lembrar que o último reajuste ocorreu no ano de 2013. É preciso citar, ainda, os casos não raros de assédio, que marcam as relações assimétricas entre orientadores e orientandos.
Como se todos esses fatores não bastassem para tornar o trabalho na pós-graduação bastante difícil, muitas vezes é preciso enfrentá-los sozinho. A trajetória acadêmica é, via de regra, um percurso bastante solitário. Consequência da ordem meritocrática e individualista, a produção científica é compreendida como tarefa estritamente individual: se a cada um cabe o mérito do êxito, a cada um cabem os percalços do caminho. A falta de espaços de trocas e construções coletivas contribui para reafirmar essa lógica.
A verdade é que o meio acadêmico na pós-graduação tem se tornado nocivo. A competitividade e a pressão a que os pesquisadores estão submetidos são fatores comuns no dia-a-dia da universidade. Desse contexto também faz parte a vaidade intelectual. A coisa toda funciona como se algumas poucas pessoas encarnassem em si mesmas a genialidade e a intelectualidade. São os brilhantes acadêmicos que têm sempre algo a dizer, mesmo que a grande massa de reles mortais sequer compreenda o que está sendo dito. Não são incomuns aí os relatos de pós-graduandos que se sentem inferiores por acharem que não têm o mesmo domínio teórico que supostamente teriam seus seletos colegas e que alimentam por isso um profundo sentimento de culpa. “Eu me sinto burra demais aqui”.
Competição, meritocracia, individualismo, produtivismo e precarização das condições de trabalho não são, no entanto, “privilégios” do meio acadêmico. Ao contrário, a sociabilidade capitalista faz deles importantes pilares na sustentação e manutenção de seu funcionamento. A universidade reproduz e sustenta essa lógica, determinada desde fora. Em outras palavras, todos esses elementos, que fazem do meio acadêmico fonte de adoecimento, encontram suas raízes, não apenas dentro, mas também fora dos muros da universidade. Por isso, é preciso colocar a questão da saúde mental e do adoecimento psíquico na pós-graduação nos marcos da sociabilidade capitalista. O atual cenário de adoecimento na pós-graduação é ininteligível sem o reconhecimento de sua profunda inserção nas determinações socioeconômicas do capital.
Ao discutirmos o adoecimento psíquico, é preciso ter em vista que o psiquismo humano e tudo o que a ele se relaciona, tem suas raízes nas condições objetivas e deve, portanto, ser compreendido como produto e processo social, determinado histórica e culturalmente. Isso significa que o adoecimento não pode ser visto a partir de uma chave de compreensão estritamente biológica, mas deve ser situado no bojo dos processos históricos e culturais que são, em última instância, determinados pela maneira como a humanidade produz e reproduz sua existência – o modo de produção.
Os autores soviéticos da Psicologia Histórico-Cultural, já no início do século XX, apontavam para uma relação de dependência entre a constituição do psiquismo e o modo de vida (compreendido aqui de maneira ampla, enquanto sociabilidade): os seres humanos são criados pela sociedade na qual vivem. A esse respeito, vale sempre enfatizar: afirmar que há determinantes objetivos que fundam o desenvolvimento do psiquismo não significa dizer que há uma relação mecânica entre os aspectos materiais e os subjetivos. A subjetividade não é uma reprodução mecânica da vida material. A influência da base material sobre a superestrutura psíquica consiste em um processo complexo, mediado por um grande número de fatores objetivos e subjetivos.
O fato é que, em uma sociedade dividida em classes, precisamos reconhecer que a personalidade e a subjetividade têm também um caráter de classe. Aqui cabe retomarmos as colocações do autor soviético Lev Vygotski, que é categórico a esse respeito: “A psicologia (…)só pode ter uma conclusão direta: confirmar o caráter de classe, a natureza de classe e as distinções de classe como responsáveis pela formação dos tipos humanos. As várias contradições internas, as quais se encontram nos diferentes sistemas sociais, encontram sua expressão acabada tanto no tipo de personalidade quanto na estrutura do psiquismo humano de um período histórico determinado”[3]. Assim como é preciso compreender o desenvolvimento psíquico a partir da sociedade que o determina, é preciso compreender que há aspectos objetivos que determinam nosso estado de saúde mental. Por isso, falar em processos de sofrimento e adoecimento implica retirá-los do âmbito das explicações naturalizantes e individualistas e do campo restrito da concepção biomédica que predominam nos dias de hoje.
Marx já nos dizia que, no capitalismo, é o trabalhador que existe em função da saúde do processo de produção, e não o processo de produção em função da saúde do trabalhador. Se partimos da compreensão de que o fazer pesquisa é um trabalho e o pós-graduando é, portanto, um trabalhador, discutir a saúde na pós-graduação nos leva aos determinantes dos processos de produção no meio acadêmico. O que, afinal, determina a realização de pesquisas e a produção de ciência e tecnologia nas instituições brasileiras de ensino superior?
Mészáros[4][5] já apontava que é preciso ter em vista que a ciência nunca pôde estabelecer seus próprios objetivos de produção. Ao contrário, ao longo de todo o seu desenvolvimento ela foi obrigada a servir à expansão do valor de troca dentro do quadro de um sistema de produção orientado para o mercado. Nessa lógica, a tecnologia capitalista é estruturada com a finalidade única da reprodução ampliada do capital a qualquer custo social. Assim, temos que os interesses capitalistas determinam a produção do conhecimento científico no interior das universidades. Ciência e tecnologia não são neutras e não podem ser compreendidas independentemente das relações de produção. Basta notar, por exemplo, que os processos de industrialização nos países de capitalismo dependente, como é o caso do Brasil, foram diretamente definidos a partir de fora pelos países que estão no centro do capitalismo, assim como ocorre com o que é produzido em termos de ciência e tecnologia em nosso país até os dias atuais.
Em uma ampla discussão sobre o tema, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) [6] lembra que é preciso ter em vista que a dinâmica de produção de ciência e tecnologia está diretamente determinada pela divisão internacional do trabalho. O lugar que os países da América Latina e África desempenharam e ainda vêm desempenhando nesse cenário, a saber, o de produtores de mercadorias primárias a serem exportadas para os países centrais, acarretou em um baixo nível de desenvolvimento tecnológico, já que a produção desse tipo de produto requer grande quantidade de força de trabalho e pouca tecnologia. Assim é que a dependência técnico-científica é um dos esteios da dependência econômica dos países periféricos em relação aos países centrais. A produção industrial no Brasil, por exemplo, baseou-se na montagem de produtos e não em sua concepção e criação, atividades que implicam desenvolvimento de um complexo de ciência e tecnologia interno e autônomo. Daí concluímos que o lugar que o Brasil ocupa no contexto da economia mundial tem influência direta sobre a produção de ciência e tecnologia e a realização das pesquisas na pós-graduação. É impossível pensar o trabalho na pesquisa apartado dos fatores socioeconômicos que o determinam.
É nesse contexto que a ofensiva neoliberal tem avançado sobre nossas universidades e precarizado ainda mais as condições de trabalho nesse âmbito. Há um projeto de desmonte das universidades públicas que vem sendo implementado a passos largos, através de um conjunto de iniciativas que incluem desde a Emenda Constitucional 95, passando pela reforma trabalhista e, mais recentemente, a lei da terceirização irrestrita. Todas essas medidas contribuem, cada uma a sua maneira, com o sucateamento da universidade pública e afetam diretamente as condições de produção de pesquisa. A falta de professores e orientadores, os cortes de bolsas de pesquisa, a fragilização de políticas de permanência estudantil e a precarização da estrutura necessária são uma realidade no cotidiano da pós-graduação. Soma-se ao cenário a dificuldade que muitos profissionais após concluírem a pós-graduação vêm enfrentando para se inserir no mercado de trabalho.
A despeito de toda essa falta de infraestrutura, é preciso produzir, cada vez mais e cada vez em menos tempo. A lógica produtivista há tempos adentrou a academia brasileira e acelerou profunda e demasiadamente nosso ritmo de trabalho e de vida, nossa experiência do tempo, o que exerce impacto direto sobre nossas subjetividades e nossa saúde mental. Os critérios de avaliação da Capes mantêm e aprofundam essa lógica. Para ficarmos apenas com um dos tantos exemplos possíveis, basta lembrar que nesse sistema a publicação de artigos conta mais pontos do que a publicação de livros. Aqui as palavras de ordem são “produzir” e “publicar”. A passos largos elas caminham juntas.
Esse é o cenário pintado pelos interesses capitalistas na universidade pública e é sobre essas condições que o trabalho de pesquisa na pós-graduação é desenvolvido. Por tudo isso, pensar a produção do adoecimento psíquico na pós-graduação implica pensar as próprias condições de produção de ciência nas instituições de ensino superior nos marcos da sociedade capitalista. E é precisamente por não ser possível desvincular tais questões, que o enfrentamento às condições que produzem o adoecimento não pode ser apartado da luta contra o capitalismo, contra os determinantes últimos que o produzem.
Na tentativa de enfrentar o adoecimento vivenciado na pós-graduação, alguns programas, institutos ou mesmo universidades começaram a implementar grupos de apoio, acolhimento ou atendimento psicológico. Em muitos casos as iniciativas são tomadas pelos próprios pós-graduandos, que contratam um profissional para prestar atendimentos em grupo. Tais iniciativas nos dizem de uma demanda real e da necessária construção de estratégias de enfrentamento à questão do adoecimento. Esse enfrentamento, no entanto, não pode ficar restrito ao trabalho psicoterapêutico individual ou mesmo em pequenos grupos. Se não houver clareza quanto à necessidade de uma mudança estrutural e se esse trabalho não estiver atrelado a esse projeto de mudança, seus resultados serão sempre muito limitados, visto que não buscam transformar os reais aspectos que produzem o adoecimento. O trabalho psicoterapêutico é profundamente importante, mas para que não caia em uma lógica individualista de enfrentamento, precisa estar atrelado a um profundo questionamento das bases sociais do próprio adoecimento psíquico e do fortalecimento de estratégias coletivas de enfrentamento às condições que impõem esse adoecimento.
A árdua tarefa de desvincular a universidade das determinações capitalistas destrutivas e das condições que produzem o adoecimento em seu interior, nos coloca frente à necessidade de estabelecer novos princípios e orientações na sociedade como um todo, de modo que o trabalho realizado na universidade possa florescer a serviço dos objetivos da emancipação humana. O enfrentamento ao adoecimento na pós-graduação é, essencialmente, o enfrentamento anticapitalista. É o imperativo da necessidade da luta, a luta por uma universidade popular, que rompa com os interesses capitalistas e coloque-se a serviço das reais necessidade da classe trabalhadora. É a luta por um projeto de sociedade que coloque a baixo a estrutura burguesa da universidade, que destrua a lógica meritocrática, individualista, competitiva e produtivista que vigora dentro e fora dos muros da academia.
Referências bibliográficas:
[1] http://www.anpg.org.br/wp-content/uploads/2018/04/Resumo-question%C3%A1rio-2.0.pdf
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/15/ciencia/1521113964_993420.html
[3] VIGOTSKY, L. (1930) A transformação socialista do homem. Disponível em: http://www.gaeppe.unir.br/uploads/57575757/A%20Transformacao%20Socialista%20do%20Homem%20-%20Lev%20Vigotski.pdf
[4] MÉSZÁROS, I. (2004). O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial.
[5] MÉSZÁROS, I. (2002). Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial.
[6] Cadernos ANDES. (2018). Neoliberalismo e Políticas de C&T no Brasil: um balanço crítico (1995-2016). Brasília, n.28. Disponível em: http://portal.andes.org.br/imprensa/documentos/imp-doc-186083876.pdf