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A Situação da UERJ Reflete o Dilema da Esquerda Institucional
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A Situação da UERJ Reflete o Dilema da Esquerda Institucional

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Por Ghabriel Ibrahim, militante da UJC e do PCB

Publicado originalmente no Jornal O Poder Popular em 16 de setembro de 2024

Em breve a ocupação estudantil do Pavilhão Reitor Lyra Filho, principal corpo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), completará três semanas, tendo sido ocupado no dia 20 de agosto após assembleia. Também campi como a Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF) e a Faculdade de Formação de Professores (FFP) constroem processos de ocupação contra a Ato Executivo de Decisão Administrativa (AEDA) 038/2024, chamada de “AEDA da fome” por produzir como efeito imediato a suspensão do pagamento da bolsa de auxílio-vulnerabilidade instituída durante a pandemia para uma parcela do corpo discente. O processo de disputa política pelo orçamento da universidade, porém, fornece lições para muito além de seus espaços, sobretudo durante novo período de eleições burguesas.

A reitoria envolvida em todo o imbróglio foi eleita em pleito recente contra os candidatos da então situação, responsáveis pela implantação de boa parte dos auxílios em disputa. Ocorre que tal implantação se deu também com pouco ou nenhum diálogo com o corpo estudantil: embora bem-vindos e necessários, foram fruto de negociações obscuras com o governo do estado que historicamente ataca a Uerj. Em meados desse ano, o governador, Cláudio Castro, nomeou como secretário de Ciência e Tecnologia um parlamentar notório por defender a extinção da universidade. Durante a gestão ora derrotada, descobriram-se folhas de pagamento secretas (e gordas) destinadas a cabos eleitorais de extrema-direita, e embora não se possa efetivamente associar uma coisa à outra, fato é que ainda não foi plenamente estabelecido o caminho do dinheiro.

Ambas as chapas se diziam chapas progressistas, de esquerda. A chapa vencedora, porém, foi a que mais reforçou a necessidade de articulação plena entre os três setores, tendo realizado imenso trabalho político de convencimento do maior deles, os estudantes. O reconhecimento desse grupo como ator político relevante e de seus constituintes como sujeitos atuantes e pensantes na universidade foi o fiel da balança. Entretanto, num primeiro momento pós-eleição, uma reitoria eleita com massivo apoio estudantil por centralizar sua campanha na compreensão do poder de agência deste setor o alijou do debate que mais lhe dizia respeito. O fez também com os outros setores da universidade que, ao que tudo indica, foram igualmente pegos de surpresa por um ato administrativo publicado no final das férias do meio do ano. Estes outros setores vêm demonstrando solidariedade aos estudantes.

Após a reação, esta mesma reitoria tem como resposta imediata a criminalização da mobilização estudantil. Ora, se há problemas e estes problemas transcendem a mera gestão da universidade (derivam de uma política do estado, etc.), então uma categoria mobilizada e disposta a lutar deveria ser notícia positiva, sobretudo se a luta se articular de dentro para fora. A escolha da reitoria foi, por outro lado, defender a inevitabilidade dos cortes e a responsabilidade de realizá-los do ponto de vista fiscal, sem apresentar, concretamente, avaliação política de seus efeitos. Nesse momento, age como correia de transmissão entre governo do estado e Uerj, se resguardando no papel meramente burocrático da gestão gerencial.

Essa contextualização algo extensa nos encaminha para o cerne do texto: mesmo havendo divergências políticas entre frações da esquerda hegemônica, parece haver uma dificuldade generalizada de verdadeiramente apostar em disputas políticas para além da mera institucionalidade. A luta se restringe ao terreno do “possível”, por mais absurdo que esse “possível” seja. O cenário distópico da ascensão e consolidação da extrema-direita enquanto força política relevante ainda mantém parte significativa da esquerda numa posição estritamente defensiva, assumindo preventivamente o papel de gestão dos mesmos instrumentos burocráticos que servem para manter nossos sonhos encastelados.

O que se torna cada vez mais evidente, inclusive de modo algo trágico, é que dessa forma cabe à extrema-direita o papel de mobilizar verdadeiramente a insatisfação com o “sistema”. Essa mobilização toma sempre a forma de um simulacro, embora seja efetivamente manifesta de formas diferentes: com Bolsonaro, até o momento maior símbolo desse movimento nacionalmente, se apresenta como destruição a partir do “contra tudo isso que tá aí”; com Pablo Marçal, figura que vem se destacando na atual eleição para prefeitura de São Paulo, assume feição mais “esperançosa” através da imagem do homem que alcança sucesso financeiro por conta própria, fora de qualquer vínculo formal, e dialoga, agressivamente “motivacional”, com a população autônoma que deve buscar sua subsistência na base do “se vira”. Frente a demandas históricas muito concretas de parcela relevante de sua base de apoio, a esquerda institucional se acovarda: Boulos, para falar de um oponente direto de Marçal, além de quadro político de nível nacional, recua na defesa da ampliação do direito ao aborto. A proposta é fazer com que as coisas que estão postas funcionem da forma “correta”, o que supostamente não ocorreria. A extrema-direita, por sua vez, não se omite na tentativa de atacar as insuficientes garantias à autonomia do corpo da mulher trabalhadora, e os resultados vêm sendo colhidos tanto a nível institucional como para além dele.

No campo da política de uma universidade, as demandas são menores em escopo, mas não necessariamente menos sérias. Num cenário de desmobilização ampla, com políticas de permanência sem garantia e sempre dependentes de acordos pouco claros, a comunidade acadêmica uerjiana tinha como grandes demandas participação e articulação. Como na política institucional burguesa, em que se sabe que a defesa dos direitos reprodutivos é pauta histórica da esquerda e se sabe que a guerra às drogas assume uma função prática de guerra aos pobres; na Uerj se sabia que essas demandas mobilizavam todos os três setores. Como na política institucional burguesa, lideranças crescem defendendo pautas caras historicamente e, justamente na fronteira de assumir o poder – ou já o tendo assumido – passam a moderar o discurso de modo a mitigar o entusiasmo de sua base de apoio sem que isso se reflita em ganho real de apoio por parte “do lado de lá”. Não importa o quanto a reitoria demonstre ser composta de gestores responsáveis, Cláudio Castro seguirá tendo como meta a destruição da universidade pública e seus pares seguirão agitando suas bases para tal. O papel de lideranças progressistas – e a reitoria é, institucionalmente, liderança máxima da universidade – não deveria ser acomodar as bases frente ao “possível” quando este é ditado por um governo inimigo da educação.

Em todo o processo de crise pelo qual passa a Uerj, um valor administrativo tomou a dianteira no debate: “transparência” é cobrada por estudantes, técnicos e professores e é defendida enquanto inegociável por parte da reitoria. Há, portanto, divergência acerca da aplicação ou não desse valor enquanto princípio. Talvez o que explique a crise seja a ampla adoção de um valor gerencial como panaceia frente ao problema apresentado. Talvez, portanto, seja necessário voltar a defender que lideranças progressistas assumam valores de outra ordem. No lugar de “transparência”, mais cabe voltar a demandar a boa e velha “solidariedade”. Importa menos que certas informações não sejam divulgadas e mais que a parcela afetada por políticas regressivas tenha que ser surpreendida por elas e ainda tenha que aceitar calada sob o risco de ser criminalizada. O problema não é falta de “accountability”, para usar termo da moda; mas sim ignorar que o maior setor da universidade é composto de atores políticos capazes de propor alternativas e ações concretas em prol da universidade a partir da socialização ampla de informações que a concernem.

A avaliação política da universidade que queremos, da universidade que temos e dos meios de que dispomos para pressionar é o central. Quantos alunos perderão benefícios? Quais as consequências disso? Estamos dispostos a encarar essas consequências enquanto comunidade acadêmica? Em qualquer processo de luta a derrota é uma possibilidade concreta. Quando se soube que em agosto seria necessário cortar auxílios? Não nos parece que tenha sido na última semana de julho como divulgado. Se os setores da universidade estivessem cientes, de que forma as articulações seriam conduzidas a fim de mitigar os danos dessa “necessidade”? A reitoria poderia liderar um processo de articulação entre os três setores a fim de organizar a luta coletiva, utilizando demandas recentes como catalisador para buscar demandas antigas. Não o fez. O movimento estudantil organizado está tratando de fazer: falta a consolidação do apoio de técnicos e professores com a adesão à greve.