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A Necessidade do Trabalho de Base
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A Necessidade do Trabalho de Base

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Por: André Brandão* e Gabriel Carvalho**

A base e a sua capacidade de transformação

É muito comum nos espaços políticos de esquerda – ou que se autodenominam de esquerda – se falar na importância do “trabalho de base’’. Contudo, nem sempre se compreende exatamente o que significam essas palavras, a começar pela noção de base. Do que estamos falando quando tratamos da base?

Dentro do vocabulário político, a base se refere fundamentalmente a duas realidades distintas, mas não desligadas uma da outra. Na primeira realidade, que nomearemos base específica, tratamos de um grupo particular de certo espaço social que compomos. Neste sentido, existe a base de moradores do bairro onde moramos, a base de profissionais da categoria em que trabalhamos, a base de estudantes de onde estudamos, etc. Ou seja, nesse sentido a base representa todos os indivíduos de determinado grupo político.

Na segunda realidade, que nomearemos base total, pensamos na base da nossa sociedade. Ou seja, pensamos na classe que sustenta materialmente a vida coletiva. No nosso caso, quando falamos em base neste entendimento mais amplo do termo, falamos da classe trabalhadora. Esta é a classe que produz a riqueza social. Entretanto, ela não dispõe dessa riqueza. Tal riqueza é apropriada de forma privada pela classe dominante, que detém os meios de produção.

A base específica está contida na base total: nós, em conjunto com outros indivíduos sociais que compõem nossos locais de trabalho, estudo e moradia, somos expressões singulares de um todo maior: a classe trabalhadora. Tal distinção que fizemos tem como objetivo facilitar a análise da questão. Assim, trataremos em momentos diferentes as expressões particulares ou universais da classe – sem cair no equívoco de torná-las realmente separadas.

Destas duas noções de base, podemos chegar a duas consequências:

1) Se a base é um grupo a qual fazemos parte, não há razão para tratarmos a base como um corpo estranho a nós. Nem podemos, por outro lado, dar razões para a base nos enxergar como um estrangeiro. É evidente que haverá diferenciações necessárias em vários níveis do trabalho de base, como na relação educando-educador, mas não se deve perder de vista o comum pertencimento à mesma classe;

2) A forma como a classe trabalhadora foi forjada no capitalismo faz com que ela seja o sujeito revolucionário do nosso tempo. É ela que possui interesses materiais antagônicos à manutenção da ordem do capital, já que não há como o proletariado apropriar-se da riqueza social dentro do capitalismo – enquanto classe, e não enquanto um indivíduo minoritário. É ela que tem a possibilidade de dirigir uma ruptura com a ordem, por ser a maioria, por ser quem mais sofre com as contradições sociais do mundo burguês, e por ser aquela classe que é a força de trabalho que edifica o nosso mundo.

A ordem burguesa, cumprido seu papel revolucionário na história, ainda mantém a contradição máxima da história humana: a divisão da sociedade em classes, permitindo uma dinâmica social fundamentada na exploração do ser humano pelo ser humano. Isso impacta na nossa vida dentro do capitalismo: com todas as expropriações dos povos originários, em busca de mais terras para o agronegócio; ou a dominação ideológica através das mídias e redes sociais; ou o genocídio da população negra pela polícia militar. Para superarmos a ordem vigente, não basta só vontade e ideais. Só podemos combater o poder do capital com uma força material que possa esmagá-lo; é a classe revolucionária do nosso tempo histórico, que pode se organizar para realizar este ato revolucionário. A questão é que tal movimento revolucionário só é possível caso haja o trabalho de base.

O real significado do trabalho de base

Sabemos que a classe trabalhadora é o agente revolucionário da nossa época. Entretanto, imaginar que mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente, teremos a revolução socialista de maneira espontânea é um delírio idealista. Não podemos mais nutrir ilusões com noções espontaneístas do processo de transformação radical da sociedade, pois ele não ocorrerá.

Existem obstáculos reais que dificultam a entrada consciente da classe trabalhadora na arena da luta de classes. As determinações sócio-históricas que fazem do explorado um explorado e que trazem no bojo das suas contradições a viabilidade prática da sua libertação, não são visíveis à primeira vista. Não se vê a extração da mais valia no chão da fábrica, não se enxerga no cotidiano o processo histórico que nos trouxe até aqui, não se capta as ligações entre o nosso trabalho e o de outras pessoas no consumo das mercadorias que satisfazem as nossas necessidades. Para piorar somos educados através das vias ideológicas da classe dominante: ela detém o controle sobre as escolas, mídias, igrejas, universidades e outros meios de produção de ideias possam proporcionar uma forma de consciência que legitime e se adapte ao modo de produção capitalista.

O proletariado é em si revolucionário, ou seja, a possibilidade de se fazer a revolução está contido no seu ser, por conta das determinações sociais objetivas que o constituem enquanto tal. Contudo, para que ele parta para a ação revolucionária, não basta que tenha em si potencial revolucionário. Para se tornar de fato um agente revolucionário e tomar a história pelas mãos, a classe trabalhadora precisa identificar as suas próprias faculdades revolucionárias, tornando-se classe para si. E, assim, se organizar para conseguir materializar aquilo que ainda não passou de uma possibilidade prática.

A classe trabalhadora só torna-se classe para si, ou seja, forma uma consciência de classe, com a existência de dois elementos. Faz-se necessária a sua contínua experiência política dentro da ordem burguesa, com lutas vitoriosas e derrotadas pelas suas pautas do cotidiano. Além dela, o proletariado depende da sua progressiva compreensão da totalidade das relações sociais. Tais relações fazem a sociedade funcionar desta forma e as compreender nos possibilita transformar a realidade em outra – compreensão essa que só pode ser obtida com o estudo do real à luz do marxismo. Só assim o proletariado pode se organizar e desenvolver uma prática realmente revolucionária, que desenvolva as condições efetivas necessárias para a derrubada da ordem do capital.

Quando falamos em trabalho de base, falamos justamente na ação política que a militância organizada desempenha, estudando e se inserindo em determinado campo social, trabalhando para despertar, organizar e acompanhar a população na solução dos problemas do cotidiano – vinculando essa luta a luta geral contra a ordem burguesa. É a partir do trabalho de base que, agindo conjuntamente com as massas, podemos construir na luta organizada os caminhos para a superação do capitalismo.

Realizando o trabalho de base

Para iniciar o trabalho de base, é preciso haver quem realize este trabalho. Portanto, é a formação de uma sólida militância comunista, teórica e praticamente formada para dirigir o processo revolucionário, que pode dar início ao trabalho de base. Já vimos que a luta pelo fim do capital não é espontânea. A classe não chegará naturalmente e de maneira homogênea à práxis comunista. Para o desenvolvimento dessa práxis, o primeiro movimento é a unificação dos setores mais conscientes e avançados do proletariado, que já se aproximam da compreensão da necessidade da luta comunista. É este processo que cria o partido comunista, classe para si organizada, sujeito coletivo fundamental para operar o trabalho de base.

Consolidando a práxis dessa vanguarda, é necessário atuar no seio da classe trabalhadora para transformá-la. Para que a militância comunista possa adentrar de maneira qualificada nas lutas populares, dois elementos servem como necessários pontos de partida: a inserção prática e o estudo da realidade concreta. A militância não pode nem ‘’cair de paraquedas’’ no local, nem pode intervir a partir de um aporte teórico improvisado ou insuficiente. Para atuar em uma área, faz-se necessário alguma vinculação real ou algum evento/circunstância que promova alguma ligação do militante com o espaço. Não será bem recebido o militante vindo de fora do espaço que aparecer sem motivações, nem o militante que já compõe o lugar que começa a agir sem justificativa.

Além disso, a inserção possível, realizada a partir de um evento/circunstância que a justifique, não será bem sucedida se não ter sido feito de maneira prévia e depois simultânea um estudo da realidade concreta do local. Não basta compreender a totalidade das relações sociais nacionais e internacionais que fundamentam o mundo capitalista. Para fazer o trabalho de base é preciso compreender o modo como essa dinâmica social repercute especificamente no lugar a se trabalhar, pois só assim é possível ter noção do local em que se está a adentrando. E, dessa forma, ter a noção de como pode ser pouco a pouco demonstrado o modo como os problemas específicos e cotidianos estão diretamente determinados pelas condições gerais da sociabilidade burguesa.

Para realizar tal demonstração, promovendo o salto qualitativo da consciência da nossa classe, não podemos cair em dois abismos típicos do momento pedagógico do trabalho de base: o basismo e o elitismo. Chamamos de basismo a educação das massas que tenta dissolver o militante nas massas, como se qualquer forma de diferenciação entre eles, de modo que ele tivesse algo a ensinar, fosse uma espécie de autoritarismo. O educador popular basista não se preocupa em propiciar o avanço da consciência da base, justamente porque ela ‘’avança sozinha’’ – ou então já seria avançada, como dizem alguns -, e qualquer intervenção forte atrapalharia o processo. A prática basista não irá levar a luta operária a lugar algum, justamente porque a espontaneidade da classe trabalhadora não é espontânea! Ela é fruto da união da ideologia dominante ensinada com o contato cotidiano com a mera aparência dos fenômenos sociais.

Já o elitismo é o modo como alguns militantes concebem a educação popular como um processo unilateral, que ignora completamente os conhecimentos e faculdades previamente desenvolvidas pela base. Considera que a base é um conjunto de pobres coitados a serem salvos por este iluminado que chegou para vomitar neles as verdades do mundo. Está fadado ao fracasso aquele que chega num determinado espaço da vida social e começa a vociferar sem nenhuma preparação anterior a necessidade da edificação da ditadura revolucionária do proletariado.

O elitismo e o basismo são duas faces de um mesmo erro: a falta de mediação. Para conseguirmos realizar a educação popular, precisamos partir da situação imediata. Primeiro, do ponto de vista dos objetos do diálogo, que devem ser os objetos prática cotidiana. Segundo, no sentido da consciência imediata da base, dos elementos que já compõem a perspectiva inicial dessa base. É a partir deste material que o educador popular deve buscar, com paciência e habilidade, elevar este universo temático, superando as suas limitações aparentes. Tal superação é possível ao estabelecer a ligação entre a base e a totalidade em que ela está inserida, num processo em que é vital a utilização da teoria mais avançada do nosso tempo histórico para conseguir fazer a ligação entre o específico e o total. Aqui não há espaço para críticas duras às concepções da base. Não dá para superar a consciência mágica, metafísica, engrossando a voz e atacando-a. O proletariado supera a consciência metafísica a partir da compreensão prática dos seus problemas. Ou seja, é quando o ponto de vista da classe progressivamente se mostra superior para compreender a nossa realidade que a classe adere a sua própria teoria.

Por conta do que foi exposto, o processo formativo não irá avançar se não for acompanhado de um processo prático. Para que o trabalho de base possa transcorrer, a militância deve necessariamente impulsionar, organizar e acompanhar as ações políticas cotidianas da base, em busca da solução das suas demandas concretas. Só com o progressivo sucesso dessas ações que a base verá a importância do desenvolvimento da luta organizada. É a partir da obtenção de uma creche para um bairro, do aumento real do salário para uma categoria, ou do incremento de uma biblioteca de uma faculdade que a base compreende que só a luta muda a vida. É com este espírito que a base se tornará disposta a avançar nas suas lutas, se tornar mais organizada, disciplinada, unida, solidária. A base notará, com isso, a necessidade de ampliar os seus horizontes para buscar a raiz dos seus problemas e direcionar a sua ação política para a superação deles – que perpassa, naturalmente, a superação da ordem burguesa.

O desenvolvimento do trabalho de base levará ao trabalho de massas. Não é uma categoria particular que fará sozinho o processo revolucionário. À medida que o trabalho de base vai progredindo, cresce a necessidade da vinculação das bases com os outros setores que compõem a sua classe. É neste momento que são desenvolvidos, a partir das vinculações dos organismos já estabelecidos na base, órgãos maiores, órgãos de poder dual, aquelas estruturas de controle proletário que terão a tarefa de cada vez mais se contraporem aos aparatos de hegemonia burguesa. Quando este processo atingir o ápice do antagonismo, quando estas oposições se tornarem insuportáveis, estará instalada a dualidade de poderes, e será aberta então a situação revolucionária.

É nesta condição de agudo tensionamento que a burguesia será derrubada e o proletariado tomará para si o poder político, nos levando enfim ao socialismo. Entretanto, isso só será possível caso a classe trabalhadora esteja extremamente organizada e sob a direção de uma vanguarda comunista disciplinada e ligada de diversas formas ao povo e ao poder popular.

Referências:

1-http://www.reformaagrariaemdados.org.br/sites/default/files/Caderno%20de%20Forma%C3%A7%C3%A3o%20%20-%20M%C3%A9todo%20de%20trabalho%20de%20base%2015out09.PDF

2- https://www.marxists.org/portugues/ho_chi_minh/1948/04/05.htm

3- http://www.emater.tche.br/site/arquivos_pdf/teses/Livro_P_Freire_Extensao_ou_Comunicacao.pdf

4- https://pcb.org.br/portal/docs/quefazer.pdf

*André Brandão é estudante de filosofia da UFBA e militante da UJC-Brasil.

**Gabriel Carvalho é estudante de Letras Vernáculas da UFBA e militante da UJC-Brasil.