Por: Jones Manoel e Kauã Ribeiro*
No último dia 12 de agosto, na sede do Partido Comunista Brasileiro em Recife, a UJC comemorou seus 90 anos de idade com uma festa combinando política e resistência cultural. Um dos momentos mais importantes da festa foi a homenagem aos militantes históricos do PCB e da UJC Marlene da Costa Melo e Danúbio Aguiar. Os camaradas homenageados têm décadas de militância comunista-internacionalista e são um exemplo firme e cristalino do tipo de revolucionário que não se rendeu à contrarrevolução dos anos 90 que derrubou a União Soviética e quase destruiu o movimento comunista. Foi, sem dúvida, um dos momentos mais lindos da festa.
Contudo, na aparência, momentos como esse de valorização da memória e da história dos comunistas, são “apenas” homenagens emocionantes aos nossos camaradas que vieram antes. Na verdade, a questão é bem mais profunda. O cultivo, a valorização e divulgação de nossa memória é um componente fundamental da nossa luta pela hegemonia proletária contra a ideologia dominante. A memória também é disputada pelas classes em luta e quem perde a “guerra pelo passado” terá bem menos chances de ganhar o futuro. Vejamos a problemática mais de perto.
Com a ditadura empresarial-militar instaurada com o golpe de 1964 começou uma verdadeira guerra ideológica de apagamento da história e memória dos comunistas. Além da destruição física de sedes, documentos e gráficas do PCB, os intelectuais da ordem e os aparelhos de hegemonia da burguesia (rádio, grandes jornais, TV etc.) operaram uma violentíssima campanha de esterilização do pensamento crítico e da influência dos comunistas no campo da cultura e da produção intelectual. Num espectro aparentemente oposto, um “marxismo” academicista permitido pela ditadura, centrado no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e dirigido por Fernando Henrique Cardoso (com a presença de figuras como José Serra, Pedro Malan, Guido Mantega etc.), tinha como principal missão liquidar a produção teórica do PCB e os intelectuais ligados ao partido [1].
Esse movimento de liquidação da história dos comunistas teve seu auge, por mais que pareça paradoxal, com o processo da abertura política controlada pela ditadura e o surgimento e consolidação do PT como principal partido de esquerda do país. Os intelectuais ligados ao petismo, na luta pela afirmação desse partido, difundiram uma série de mitos, como a ideia de que o sindicalismo pecebista era totalmente burocratizado e longe das bases, a ausência de base operária no PCB, a inutilidade total do esforço dos comunistas na divulgação do marxismo no Brasil ou até a responsabilização do PCB pelo golpe de 1964. Na teoria e na prática, nada feito pelos comunistas era útil e trata-se de criar o “novo sindicalismo”, o “novo partido”, “o novo marxismo”, a “nova estratégia socialista” etc.
Os socialdemocratas dentro do PCB que queriam liquidar o partido e posteriormente fundaram o PPS e as forças da ordem que queriam evitar o renascimento do PCB como principal força do movimento operário brasileiro adoraram o clima anticomunista que tinha adeptos fortes à esquerda e à direita. Essa conjuntura nacional se combina com a mundial: a crise da União Soviética e dos países do Leste com a posterior derrubada de ambos no processo mundial de contrarrevolução neoliberal colocou o movimento operário e os partidos comunistas do mundo numa violentíssima defensiva história. O capitalismo ganhou uma importante batalha e um dos prêmios da vitória era o direito de escrever a história.
Ser comunista, para a ideologia dominante, era sinônimo de cumplicidade com uma história permeada de horrores, crimes, brutalidade e totalitarismo. O comunista era o responsável por genocídios e barbáries inimagináveis. No Brasil, um exemplo da criminalização da história comunista pode ser observado na historiografia sobre o golpe e a ditadura empresarial-militar. Para Daniel Araão Reis Filho, Jorge Ferreira, Ângela de Castro Gomes e tantos outros, a esquerda (isto é, especialmente o PCB) e a direita são igualmente culpados pelo golpe de 1964, afinal, ambos eram “antidemocráticos” e as organizações que lutaram contra ditadura não queriam libertar o povo daquela dominação e opressão, mas sim instaurar uma ditadura comunista (no sentido pejorativo que a ideologia dominante atribui ao termo): são colocados no mesmo plano político e moral os agentes da repressão e as classes dominantes e suas maiorias vítimas, as organizações dos trabalhadores.
Muitos militantes aceitam essa criminalização e apagamento da história dos comunistas como a expressão necessária de uma “autocrítica” dos “erros” do passado. Confundem autocrítica com autofobia, um brilhante conceito de Domenico Losurdo que significa a aceitação por parte da esquerda da leitura do século XX pelas lentes da ideologia burguesa e consequentemente a negação do nosso passado. A consequência é uma esquerda que é pautada pela hegemonia das forças do capital e incapaz de disputar o passado, produzir sua própria história, avaliar cientificamente seus erros e se fortalecer para os combates decisivos futuros.
Ainda recorrendo a Losurdo, o comunista italiano chama esse apagamento do passado de “expropriação da história” da classe trabalhadora. Num raciocínio preciso, Losurdo afirma que a permanente exploração econômica da classe trabalhadora deve vir sempre acompanhada da dominação política e da “expropriação da história” como forma dos únicos produtores da riqueza não acreditarem ser possível transformar a sociedade ou manterem qualquer forma de autoestima com seu percurso de lutas. Imagine que perfeito um trabalhador acreditar que a primeira experiência vitoriosa e duradoura de poder operário, o Estado soviético, não passava de um regime pior que o nazismo. A difusão desses mitos faz a burguesia dormir seu sono dos anjos.
Atividades como a homenagem aos camaradas Danúbio e Marlene são formas de os comunistas resgatarem e construírem sua própria história contra e por fora da ideologia dominante. A classe trabalhadora, através de suas organizações, para ser classe dominante, isto é, conquistar o poder político através da derrubada do Estado burguês e da constituição do Estado operário, precisa tornar o seu programa hegemônico no âmbito de todas as classes e camadas exploradas e oprimidas. Na formulação e propagação dessa hegemonia é fundamental que os comunistas contem a sua própria história destacando todos os exemplos que temos de heroísmo, coragem e luta. Evidentemente, isso não significa produzir uma história apologética, que nega os erros, mas os nossos erros devem ser abordados cientificamente, de acordo com o materialismo-histórico, para servir para matéria-prima de aprendizagem, e não como combustível para o anticomunismo.
É essa a outra importância da memória para os revolucionários: o aprendizado extraído da luta concreta. Lenin explica, a partir da guinada estratégica do general Nogi na guerra russo-japonesa, como a experiência prática deve ser atenciosamente depurada e analisada para a determinação das formas de luta mais adequadas em cada etapa da luta de classes. No exemplo em questão, a estratégia inicial dos japoneses era a tomada de Port Arthur via assalto direto. A derrota dessa estratégia, com enormes perdas humanas, serviu, apesar disso, como um importante indicador do melhor caminho a se seguir para a conquista de Port Arthur, abrindo caminho para a estratégia de conquista através do longo caminho do cerco, antes rechaçada pelos grandes riscos envolvidos. Dizia Lenin que, no momento inicial, “era impossível determinar [o caminho a seguir] sem indagar na prática a capacidade de resistência da fortaleza, a solidez de suas fortificações, o estado de suas guarnições, etc”. [2] E assim as forças japonesas apreenderam o significado de sua derrota inicial para posteriormente mudar sua estratégia e conquistar Port Arthur. Saindo do terreno estritamente militar, também para os comunistas a experiência concreta deve servir como uma rica fonte de aprendizado.
Esse exemplo dado por Lênin é perfeitamente aplicável à história recente do país. O PCB por décadas desenvolveu a estratégia conhecida como democrático-nacional ou democrática-burguesa que, dentre outras coisas, acreditava, a partir de uma determinada análise da realidade brasileira, que a principal tarefa das classes trabalhadoras era uma revolução nacional com participação da burguesia industrial contra o imperialismo e o latifúndio. O Golpe de 1964 com a união no bloco da reação todos os setores da classe dominante, explicitou claramente os erros dessa perspectiva. A partir dessa experiência histórica, o PCB promoveu um fundamental exame do seu passado, erros analíticos, táticos e estratégicos, e concluiu, bem antes da atual descoberta de alguns “ex-petistas”, que a burguesia nada tem a oferecer num projeto político com e para os trabalhadores. Sabíamos antes da deposição de Dilma da presidência que a centralidade da luta política na institucionalidade, alianças com a classe dominante e ilusões quanto à resolução da “questão social” nos marcos do capitalismo só podem induzir a erros e derrotas políticas. A análise séria dos nossos erros passados, sem “contaminação” da ideologia dominante, foi central nesse amadurecimento para uma estratégia revolucionária.
Portanto, a pesquisa e divulgação da história dos comunistas através de livros, documentários, matérias no jornal ou site do PCB e seus coletivos, homenagens aos camaradas, atividades culturais etc. fazem parte de uma dimensão fundamental da nossa luta política. Ser fonte de nossa própria história, como dito acima, é uma maneira de avançar no combate à ideologia dominante e ao anticomunismo, de esquerda ou direita, que busca demonizar ou apagar nossa história, e ainda se configura como um “laboratório político” para aprender com os nossos erros, e buscar não repeti-los, avançando na cada vez mais urgente tarefa de construção do socialismo.
[1] https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaoes/article/view/11095
[2] Lenin, “Informe sobre a NEP”, outubro de 1921, VII Conferência do Partido da Província de Moscou.
*militantes da UJC-Brasil em Pernambuco