Por Allefy Matheus, colaborador do site da UJC-Brasil.
Desde que a espécie humana veio à existência, seus membros trabalham – transformam a natureza, modificam-na, para obter determinado produto e assim satisfazer suas necessidades. De início, todos trabalhavam e quase toda a sua jornada era dedicada à produção dos víveres básicos. Posteriormente, não apenas as forças produtivas – isto é, os instrumentos, as matérias-primas e o próprio conhecimento humano – avançaram bastante como as próprias relações sociais entre os membros da espécie humana se modificaram profundamente. A partir do momento em que uma parte da sociedade monopolizou os meios de produção (isto é, as matérias-primas ou objetos de trabalho e os instrumentos/ferramentas ou meios de trabalho), a outra parte foi obrigada a dedicar uma parte de seu próprio tempo de trabalho para produzir bens que não seriam apropriados e consumidos por si, mas por aquele grupo que monopolizou os meios de produção.
Com a ascensão da moderna sociedade burguesa, capitalista, as forças produtivas se desenvolveram num ritmo inédito e alcançaram um nível inédito, fenômeno que se expressa no crescimento da produtividade do trabalho e na diversificação dos bens e serviços produzidos; todavia, os meios de produção nessa sociedade continuam sendo monopólio de classes que exploram a maior parte da população, isto é, que extraem do trabalho daquela os seus meios de vida, sem que precisem trabalhar.
O Brasil é uma sociedade capitalista e, como tal, apresenta em sua realidade social a exploração dos trabalhadores pelos proprietários dos meios de produção. É considerado a 9ª maior economia do mundo (em termos de PIB) [1], sendo um ‘’país de renda média’’ (em termos de PIB per capita) [2]. Com uma produtividade social do trabalho bem abaixo daquela dos países centrais [3], o Brasil tem uma das maiores concentrações de renda e riqueza de todo o mundo [4]. É intuitivo, portanto – ou pelo menos a partir de uma compreensão marxista de mundo –, que o grande PIB e a grande concentração de renda tenham bases numa grande exploração sobre os trabalhadores. Mas será que os dados corroboram essa intuição?
Para testar essa hipótese, pode-se comparar alguns dados disponíveis sobre as condições de trabalho no Brasil contemporâneo com o que sabemos sobre um país muito diferente: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nascida a partir da revolução de Outubro de 1917 na Rússia, esse país foi fruto da intenção de criar um novo mundo, livre da exploração do homem pelo homem, com a instalação de novas relações sociais de produção cujo fundamento foi a socialização dos meios de produção. Essa fabulosa iniciativa, entretanto, foi abortada em 1991, por motivos que não nos cabem aqui discutir.
O que dizem, então, os dados disponíveis sobre cada realidade social?
Primeiro, há cerca de 30 anos – isto é, desde a promulgação da Constituição de 1988 –, não há redução legal da jornada de trabalho, então definida como 44 horas semanais (anteriormente, eram 48). Há previsão de pagamento de um adicional por horas extras e a jornada diária pode chegar a 10 horas, não havendo um limite semanal, mensal ou anual do número de horas extras, que podem ser de mais de 700 horas por ano [5]. ‘’De acordo com dados da PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego – DIEESE/SEADE) observa-se que, em 2009, 36.1% dos assalariados trabalharam mais do que a jornada legal de 44 horas. Esta realidade explicita que, no caso do Brasil, a hora extra perdeu a característica de ser uma hora a ser realizada em momentos excepcionais, passando a ter um caráter de hora ordinária’’ [idem]. A Medida Provisória 1.709, de 1998, ampliou, sob demanda do empresariado, o prazo para compensação das horas extras com a criação do banco de horas. A Lei 10.101, de 2000, autorizou o trabalho aos domingos no comércio.
Estas transformações legais se deram ao mesmo tempo em que a capacidade produtiva da economia brasileira crescia como resultado de modificações técnico-organizacionais dispersas no sistema produtivo, que em muitos casos tiveram como resultado o aumento do ritmo (ou intensidade) do trabalho.
Em resumo, no Brasil contemporâneo, capitalista, observa-se longas jornadas de trabalho (sendo que às 44 horas da jornada de trabalho semanal normal somam-se horas extras), ritmo intenso de trabalho e frequentes mudanças institucionais em favor dos interesses do empresariado – como, mais recentemente, a reforma trabalhista realizada pelo governo de Michel Temer e a qual o governo de Jair Bolsonaro manifestou o desejo de aprofundar. A manifestação concreta destas condições de trabalho precárias pode ser vista através de alguns indicadores relativos à saúde dos trabalhadores: de acordo com dados do INSS, os acidentes de trabalho no Brasil quase dobraram entre 2002 e 2008, passando de 393.071 para 747.663. E tal precariedade do trabalho se revela presente em setores muito distintos de atividade econômica: por um lado, cerca de 6.000 operários (cerca de 30% da força de trabalho) da GM no Brasil passaram por afastamento devido a doenças laborais só em 2008; por outro, segundo estudo com os cortadores manuais da cana-de-açúcar em atividade no interior paulista, ao final de um dia e após numerosas sequências de operações repetitivas e extenuantes, cada trabalhador em média cortou 11,5 toneladas de cana, desferiu 3.792 golpes de facão e flexionou a coluna 3.994 vezes – e em consequência disto, tais trabalhadores têm uma expectativa de vida que não passa dos 35 anos de idade [6].
E na URSS? Neste país, a Constituição de 1977 estabelecia uma jornada de trabalho normal de 41 horas por semana, com exceções: os trabalhadores do turno da noite trabalhavam 7 horas, mas recebiam a remuneração integral; trabalhadores empregados em empregos perigosos (como mineradores) ou que exigiam vigilância crítica (como os médicos) trabalhavam 6 ou 7 horas por dia mas recebiam remuneração integral, também. Exceto em circunstâncias especiais, o trabalho em horas extras foi proibido. Cabe acrescentar que, a partir dos anos 60, os trabalhadores soviéticos dispunham em média de um mês de férias, que poderiam ser aproveitadas em resorts subsidiados; dispunham também de aposentadorias (aos 60 para os homens e aos 55 para as mulheres) e acesso subsidiado a serviços como educação, moradia, saúde, dentre outros [7].
Como se pode ver, o regime social estabelecido na União Soviética produziu condições de trabalho razoavelmente melhores que aquelas a que estão submetidos os trabalhadores brasileiros décadas mais tarde e que, se consideradas em conjunto com as condições de vida em geral da população soviética no que tange ao acesso a bens e serviços primordiais e as forças produtivas disponíveis ao país naquele tempo, revelam a superioridade inegável das relações sociais de produção (socialistas) estabelecidas naquele país pela revolução de Outubro, em comparação com o que o capitalismo brasileiro oferece, com as forças produtivas disponíveis hoje, à maioria da população do nosso país.
[1] http://www.funag.gov.br/ipri/index.php/indicadores/47-estatisticas/94-as-15-maiores-economias-do-mundo-em-pib-e-pib-ppp
[2] https://pt.tradingeconomics.com/country-list/gdp-per-capita
[3] http://www.fgv.br/professor/epge/ferreira/ProdutividadeSetorialFinal.pdf
[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/13/internacional/1513193348_895757.html
[5] https://www.dieese.org.br/notatecnica/2010/notatec87ReducaoJornadaTrabalho.pdf
[6] https://pt.scribd.com/document/140456992/Luce-M-S-A-superexploracao-da-forca-de-trabalho-no-Brasil
[7] http://boradiscutir.blogspot.com/2014/12/uma-economia-socialista-funciona.html