Nesse mês de Dezembro se completam 20 anos de lançamento do histórico álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo de Rap Racionais MC’s, um CD que nós podemos dizer que foi um marco, um divisor de água não só para o movimento Hip Hop, mas também para a música brasileira. Em 1997, com o seu próprio selo o Cosa Nostra, Racionais MC’s lançou o quarto disco de estúdio, produzido numa gravadora independente, chegando a vender 1.500,000 cópias, algo até então surpreendente para um grupo de Rap com produção autônoma.
Só que para entendermos o que significou o CD, precisamos mergulhar, e situa ló no momento em que passava o Brasil e especialmente a cidade de São Paulo na década de 90.
A partir dos anos 90 o Brasil passa por uma forte regressão econômica, sobretudo com adoção das políticas neoliberais dos governos Fernando Henrique Cardoso, um período marcado pelo baixo dinamismo econômico, retrocesso industrial, uma crise financeira do Estado com redução dos investimentos públicos, que contribuíram ainda mais para o agravamento das desigualdades sociais. E que vinha se desdobrando desde a crise dos anos 80, que ficou conhecida como a ‘década perdida’, se estendendo para os anos 90, resultando em estagnação econômica, inflação e a destruição de vários postos de trabalho.
O crescimento do desemprego foi impulsionado pela política de racionalização produtiva, que buscava um modelo de gestão eficiente, baseado na redução dos custos e utilizando a modernização tecnológica. E o resultado da adoção desse modelo foi o aumento vertiginoso do desemprego que afetou o conjunto dos trabalhadores com alta e baixa qualificação, criando uma massa de trabalhadores autônomos, com baixos salários em empregos precários e muitos outros na informalidade.
As transformações sócio – econômicas foram acompanhadas também de uma mudança cultural no campo do consumo e nos padrões do comportamento, esse momento também causou um movimento de pulverização da violência. A inserção da violência na vida cotidiana dos moradores dos grandes centros urbanos ocorre juntamente com o processo de banalização do tema nos meios de comunicação. No livro A construção da violência na televisão da Bahia: Um estudo dos programas Se Liga Bocão e Na Mira, os autores falam sobre o histórico dos programas Policialescos no Brasil. O primeiro programa do gênero foi o Aqui e Agora no SBT em 1991, e logo após outros canais também passaram a investir no mesmo tema, como o 190 Urgente (CNT), Cidade Alerta (Rede Record), Rota do Crime (Manchete) e o Brasil Urgente (TV Band).
Uma grande difusão por meio da mídia de uma imagem dos grandes centros urbanos como ambientes violentos, em que o medo e a insegurança passaram a fazer parte do cotidiano dos moradores. E esse cenário de insegurança social atingiu com mais força a juventude, que de forma contraditória, em meio a um parodoxo, foi a maior vítima da desigualdade social, se tornando também o setor apontado como os agentes causadores da violência na sociedade.
Os dados da Unesco, segundo a monografia ‘Rap e crise Juvenil em São Paulo na década de 90’ da autora Maria Patelli, mostravam que no ano de 1980 foram registrados 27 mil homicídios no Brasil, dos quais 7.524 foi de jovens com idade entre 15 e 24 anos. No ano de 2000 foram 46 mil homicídios, com 17 mil vítimas entre a população jovem, a taxa de homicídios entre os jovens passou de 30 para cada 100 mil jovens em 1980, para 51 a cada 100 mil nos anos 2000, um crescimento de 73%. E além da violência, o desemprego também era um dos maiores desafios da juventude nesse período, na região metropolitana de São Paulo, no ano de 1999 o número de jovens desocupados, sem emprego, na faixa etária dos 15 a 19 anos chegava a 73% nas famílias mais pobres.
E sabemos que o Rap guarda uma relação de preservação da cultura africana de se comunicar por meio do canto e da dança, trazidas para o continente americano com a escravidão e a Diáspora a partir do século XVI. E na década de 1960 o movimento negro jamaicano começou a instalar um sistema de som nas favelas da capital Kingston, em um momento de crescente miséria no país, e os bailes comunitários passaram a ser como pano de fundo para discursos ideológicos, que falavam sobre a violência e a situação política do país. No final da década de 1960 os EUA recebe um intenso fluxo migratório de pessoas vindo do Caribe e México, e os jamaicanos levaram para o Bronx em Nova York a cultura Sound System. E foi nesse contexto que jovens negros do Bronx desenvolveram uma manifestação artística de rua como o Break Dance, e a discotecagem de DJ’s como Kool Herc e Áfrika Bambaataa. As demandas e carências sociais da comunidade pobre e negra norte americana encontrou no movimento cultural Hip Hop uma possibilidade de sair do anonimato.
No Brasil o movimento cultural Hip Hop chegou no final da década de 1980, e entre os pioneiros estavam sujeitos como Thaide e DJ Hum, um movimento que assim como nos EUA vai ser protagonizado pela juventude negra, que fez das letras um verdadeiro manifesto contra as dificuldades das comunidades periféricas, a discriminação racial, a violência, e a narrativa da sobrevivência diária travada pela população negra e pobre das grandes cidades brasileiras.
E é essa sociedade marcada pelas desigualdades e violência, que o CD ‘Sobrevivendo no Inferno’ irá refletir. No dia 30 de Janeiro de 1997, o jornal Folha de São Paulo trouxe uma matéria em que o Capão Redondo, local onde surgiu o Racionais MC’s, tinha sido o bairro mais violento no ano anterior de 1996 em São Paulo, registrando 233 casos de homicídios. E também no ano de 1996, o mesmo jornal Folha de São Paulo divulgou uma matéria em que a região do Capão Redondo estava vivendo o ‘Efeito Bronx’ – bairro de Nova York onde surgiu o Rap nos EUA – que era a desvalorização dos imóveis e a saída de moradores da localidade por causa da violência. E isso não foi uma mera coincidência, pois os mesmos fenômenos sociais tanto nos EUA como no Brasil, são responsáveis pelo surgimento do Rap como música de protesto negro.
Pois como o próprio grupo fala no seu site, o Racionais MC’s traz em suas letras a narrativa de como é duro ser negro e pobre no Brasil, e que os discursos dos rappers tem a preocupação, e o objetivo de “denunciar o Racismo e o sistema capitalista opressor que patrocina a miséria que está altamente ligada com a violência e o crime”, vejam aqui.
Mas 20 anos depois, o que faz com que o álbum do Racionais MC’s seja considerado tão atual, o que não mudou no Brasil relatado no CD, ainda estamos tentando sobreviver no inferno?
Na música ‘Capítulo 4, Versículo 3’, por exemplo, é dito na introdução que nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos eram negros. E atualmente, principalmente após a adoção da Lei de Cotas em 2005, o índice que era de 5,9% em 2004, chegou a 9,8% em 2014, sendo ainda insuficiente se compararmos com a quantidade de jovens negros em idade de estarem nas universidades.
Alguns dados infelizmente pioraram, nessa mesma música é dito que a cada 4 pessoas mortas pela Polícia, 3 eram negras. O Anuário do Fórum de Segurança Pública demonstrou que entre 2015 e 2016, as Polícias brasileiras mataram o triplo de negros em comparação com as pessoas brancas. E em estados como o Rio de Janeiro, 9 em cada 10 mortos pela Polícia Militar são negros ou pardos. E o número de homicídios entre a população jovem e negra só vem aumentando, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, são 63 por dia.
E para escrever a música ‘Diário de um detento’, Mano Brown se inspirou no relato do ex presidiário Josemir Prado, que chegou a lançar um livro com esse mesmo título em 2010. Se na letra da música o Racionais relataram o Massacre do Carandiru em 1992, a situação no sistema prisional só vem se agravando a cada dia, chegamos a marca da terceira população carcerária do mundo com 726 mil presos. E os massacres atualmente acontecem em disputas entre os próprios presos nas cadeias superlotadas, que somente nesse ano de 2017 já foi superior ao do Carandiru, com 133 mortos em 15 dias, em Manaus, por exemplo, foram 56 mortos. E com o clipe ‘Diário de um detento’, Racionais ganhou em 1998 o prêmio Escolha da Audiência no VMB da MTV.
Em ‘Estou ouvindo alguém me chamar’, o grupo faz uma verdadeira análise sociológica e crítica, de como jovens da periferia entram no mundo da criminalidade muitas vezes influenciados pelas necessidades, como uma forma de afirmação social para conseguir realizar os desejos de consumo de bens materiais: […] ‘Eu só queria ter moral e mais nada, mostrar para meu irmão, para os caras da quebrada, uma caranga e uma mina de esquema, algum dinheiro resolvia o meu problema’[…] Em 2014 a Polícia Civil de Minas Gerais notou que estava crescendo o número de jovens envolvidos com assassinatos para acessar bens como carro, roupa e celular
Em Setembro o festival Red Bull Music Academy realizou um ‘Encontro com os Racionais MC’s’ para falar sobre os 30 anos do grupo e os 20 anos do álbum ‘Sobrevivendo no Inferno’. E segundo Mano Brown, na época de lançamento do CD o país vivia uma espécie de cegueira, e que eles só estavam falando o óbvio, e não eram gênios ou intelectuais como alguns achavam.
No ano de 2007 o CD tinha feito 10 anos, e em uma entrevista para o G1 da Globo, o DJ KL Jay disse que o álbum foi feito para todo o Brasil, não apenas para a periferia e que foi um disco que enraizou o grupo. E diferente do CD duplo ‘Nada como um dia após o outro dia’, que segundo ele foi um álbum melhor elaborado, sendo trabalhado em casa para depois ser levado para o estúdio, o CD ‘Sobrevivendo no Inferno’ passou por um processo ao contrário, o disco foi produzido totalmente no estúdio, com inspiração de todos, disse KL Jay.
As batidas, por exemplo, os chamados Samples, foram todos produzidos no estúdio, em meio a gravação do disco. E ouça algumas músicas que são utilizadas para as batidas do álbum, ‘Estou ouvindo alguém me chamar’, (Tom Browne – Charisma) ouça aqui, ‘A formula Mágica da Paz’, (The Bar kays – Attitude) ouça aqui, ‘Diário de um detento’, (Edwin Starr – Easin’ In) ouça aqui.
Em 2015 o Prefeito de São Paulo, Fernando Haddad entregou ao Papa Francisco o CD ‘Sobrevivendo no Inferno’, quando visitou o Vaticano, a ideia do presente veio de um grupo de jovens da periferia de São Paulo para o coordenador de Políticas para a Juventude, por causa das referências religiosas na capa do álbum e nas músicas.
E mesmo não se achando uns gênios, o Racionais MC’s não deixaram de ser reconhecidos como intelectuais e produtores de conhecimento, inclusive se tornaram objetos de pesquisa em programas de pós graduação em Universidades brasileiras.
Em 2012, Rogério de Souza Silva defendeu uma tese na Unicamp – Universidade de Campinas – chamada a ‘Periferia pede passagem: trajetória social e intelectual de Mano Brown’, que discute a importância do movimento Hip Hop para a transformação da vida dos jovens da periferia, tendo como base a trajetória social e intelectual do cantor do Racionais, defendendo que o Rap permite que os mc’s possam apresentar a sua visão crítica de mundo, ganhar visibilidade e não entrarem no mundo da criminalidade. Acesse aqui a tese no repositório de trabalhos acadêmicos da Unicamp.
Na Universidade Federal de São Carlos, no curso de Sociologia foi apresentada uma dissertação de Mestrado por Henrique Yagui com o titulo de ‘Evangelho segundo Racionais MC’s: ressignificações religiosas, políticas e estético – musicais nas narrativas do rap’, no ano de 2014. A dissertação estuda os significados que a narrativa de Rap feita pelo Racionais MC’s sobre o cotidiano periférico, se baseava em três eixos: o Religioso que utiliza noções de ética e moral cristã, com base em livros como Êxodo, Gênesis e a figura de Jesus Cristo, o Político com característica subversiva e crítica, com influência de lideranças negras como Malcom X, contra o Racismo e as desigualdades sociais, e a Estética – Musical através do instrumental influenciado pela musicalidade negra como Funk, Soul e Samba, em dois álbuns, no ‘Sobrevivendo no Inferno’ e ‘Nada como dia após o outro dia’. E para ler a dissertação clique aqui.
É inegável que o Racionais MC’s e o álbum ‘Sobrevivendo no Inferno’ – ouça aqui – são grandes influências para a juventude dos anos 90, e até para quem nasceu depois desse período, sem sombra de dúvidas a consciência política de muitos jovens negros da periferia foi formada pelas músicas do grupo, inclusive a minha. E quem é envolvido com o Rap seja como artista ou público tem que prestar reverência a esse disco.
Henrique Oliveira é graduado em História, mestrando em História Social pela UFBA, colaborador da Revista Rever e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia.
Texto Original em: https://diariosincendiarios.wordpress.com/2017/12/14/20-anos-do-cd-sobrevivendo-no-inferno-racionais-mcs-a-furia-negra/